25/05/2024 - 5:13
Com o recuo das águas, voluntários e atingidos pelas enchentes buscam pertences que carregam histórias e afeto.”Ninguém vai ver o sofá, a TV, todos correm para buscar fotos ou algum tipo de recordação. É unânime: todos”, relata Gustavo Oliveira, de 27 anos, criador de uma força-tarefa voluntária na cidade de Novo Hamburgo que tem auxiliado na limpeza de casas atingidas pelas enchentes no Rio Grande do Sul, o Limpa Novo Hamburgo.
Mais do que bens materiais, os atingidos pela tragédia perderam espaços e objetos que carregam sua identidade e o senso de significado em suas vidas. “Uma das cenas mais marcantes que vimos foi um homem que encontrou a aliança em meio à bagunça deixada pela água. Assim que pegou, ele desesperadamente colocou o anel de volta no dedo”, conta Oliveira, que, com o grupo, já contribuiu para a limpeza de mais de 60 casas.
Diferente do anel, muitos outros objetos carregados de lembranças e sentimentos não puderam ser salvos. Em meio a tantas urgências, o resgate da memória é uma preocupação dos indivíduos e comunidades.
Oliveira relata que algumas fotografias encontradas pelas famílias estão altamente danificadas, sendo difícil identificar seu conteúdo. “As fotos estão muito borradas. Teve um pai que nos mostrava fotos dos filhos, mas mal dava para distinguir o rosto das crianças. Só que ele falava sobre a imagem com um detalhamento absurdo como se fosse possível enxergar tudo aquilo. Na cabeça dele ainda era possível ver muita coisa ali”, relata.
Muitos ficam paralisados ao retornar aos seus lares e encarar o estado das coisas. Esse sentimento de entrar em um lugar que outrora acolheu sua família, que era arrumado e aconchegante, e vê-lo destruído foi vivido pela artesã e comunicadora Luciana Gastal. A casa dos seus avós maternos – já falecidos – na pequena cidade de Sinimbu, onde costumava passar as férias quando criança, foi tomada pela água.
“As coisas da cozinha estavam na sala, as coisas dos quartos na cozinha, tudo misturado e no escuro. É muito diferente quando você está dentro, limpando a sua lama, do que quando você está fora, limpando o barro dos outros. A minha referência de casa, de lar, de família, era aquela casa ali”, revela.
Da casa, Gastal conta que os móveis foram na totalidade para o lixo. Ela conseguiu salvar poucas fotografias, o relógio do avô e panos de crochê e bordados da avó. “Consegui rasgar uma página de um álbum de fotos que estava seca, era a foto de casamento dos meus tios. Entreguei para minha prima, filha deles, que perdeu tudo na enchente. Uma foto da minha filha com a avó estava suja de lama no quarto. Aquilo me tocou muito.”
Um olhar atento para o entulho
No momento de arrumar a casa, os atingidos estão muitas vezes sob pressão para tentar limpar tudo rapidamente e anestesiados pela emoção. Em meio ao caos, pode ser difícil identificar peças e utensílios que poderiam ser restaurados. “Por exemplo, na casa da avó tinha um móvel antigo que tinha puxadores lindos. O móvel estava destruído, mas eu podia ter pegado os puxadores, só que estavam cobertos de lama e não me dei conta. Mas quando você está de fora, limpando como voluntário, você consegue discernir melhor e ajudar famílias a contar aquela história depois. Nem que seja resgatando um item, sabe”, explica a empresária.
A crença no valor e importância das pequenas coisas fez Gastal ir adiante. “Quando eu olhei para a rua do lado de fora da casa da minha avó, parecia que toda casa que estava ali tinha virado entulho, que eu não consegui salvar nada, mas claro que eu salvei alguma coisa, e isso foi muito importante nesse momento”.
Gastal passou duas semanas em Sinimbu, limpando não só a casa da família, mas ajudando na limpeza de casas de terceiros e no regaste da memória da própria cidade. “Fui para a rua e comecei a caminhar. Toda casa tinha sua montanha de entulhos na frente. Comecei a catar coisas desses lixos, porque a patrola [máquina que faz a terraplanagem] passava rápido e levava tudo embora.”
Sinimbu é uma cidade de 10 mil habitantes no interior do estado, no Vale do Rio Pardo, de colonização alemã e que mantém uma tradição de trabalho vinculado à terra. As águas chegaram a três metros de altura nas principais ruas da cidade e todas as residências, lojas e outros estabelecimentos da zona central foram inundados.
Por ter essas dimensões e pelo tamanho do estrago, Gastal teme o apagamento da história do município: “Toda história da cidade estava ali dentro daquelas casas. Não tem museu. Não é alguém que veio de São Paulo para morar ali. Quem é de Sinimbu, o avô veio da Alemanha, é tudo muito distante. Então a história é os objetos que estão ali, e estão indo para o lixo.”
Um trabalho de formiguinha
Junto com as amigas Viviane Rizzolo, influenciadora digital, e Bettina Backes, professora, Gastal criou um projeto nas redes sociais intitulado “São Nossas Origens” para recuperar pertences das famílias afetadas.
Na pacata cidade, garimparam louça, cristaleira, armários, camas, cadeiras, santos e objetos religiosos. “Na frente da escola onde a minha mãe foi professora, tinha várias cadeiras e carteiras antigas e de boa qualidade que iam ser levadas embora. Eu juntei uma caixa de ciências muito bonita, que deve ter uns 60 anos. Também estava ali todo um equipamento de laboratório. Juntamos coisas bem preciosas”, relata, “vamos arrumar e devolver à escola no futuro”.
O grupo usa as redes sociais para captar a ajuda necessária, como marceneiros, voluntários de limpeza e todo tipo de profissional que possa auxiliar no restauro dos objetos.
A ideia é devolver itens restaurados se os donos forem localizados e doar alguns objetos achados, como mesas, cadeiras, camas, para a população mais necessitada. “Já doamos algumas coisas que fomos garimpando para quem estava por ali e tinha perdido tudo”, aponta Gastal.
Escrever novas histórias
O grupo percebeu que talvez uma parte significativa da história tivesse mesmo sido perdida quando a água varreu uma cidade tão pequena, mas que, dali para frente, também seria possível escrever novas histórias. O que era garimpado poderia virar um elemento importante para os lares que serão reconstruídos.
“Eu vejo muito amor nessas coisas. Daqui a pouco uma chaleira colorida que a gente pegou do lixo pode virar um vaso de flores e dar vida para uma casa”, diz a artesã.