Em 13 de março de 1964, Jango reuniu 200 mil pessoas no Rio para anunciar conjunto de reformas. Evento despertou ira conservadora e foi mais um impulso para a queda do presidente eleito.Há 60 anos ocorria o último ato público do governo democrático antes do golpe que instituiu a ditadura no país. Durante o Comício da Central, ocorrido em 13 de março de 1964, o então presidente João Goulart, o Jango, e o ex-governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola reuniram, segundo estimativas da época, cerca de 200 mil pessoas na Praça da República, centro do Rio de Janeiro.

O plano de Jango era realizar uma série de dez comícios do tipo, nas principais cidades brasileiras, culminando com um evento em 1º de maio, Dia do Trabalhador, em São Paulo. Os eventos deveriam divulgar a agenda de reformas do governo e garantir o apoio popular frente à resistência dos parlamentares.

“Era uma ofensiva política que o presidente queria fazer para pressionar o Congresso a aprovar determinados dispositivos de reforma constitucional que eram importantes para a realização da reforma agrária”, sintetiza o historiador Daniel Aarão dos Reis, professor na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Jango queria alterar a previsão constitucional de exigir indenização prévia em dinheiro para desapropriação de terras improdutivas, os pagamentos passariam a serem feitos em títulos da dívida pública. Mas não era só reforma agrária. Desde 1961, o governo pretendia reestruturar os setores educacional, político, fiscal, urbano e agrário, avançando sobre planos herdados dos técnicos da gestão anterior, a presidência de Juscelino Kubitschek. A série de comícios deveria apresentar ao público essas iniciativas.

“O propósito [do Comício da Central] foi a mobilização da opinião pública e de segmentos sociais diretamente interessados nas reformas de base. Estas compunham um conjunto de projetos governamentais, elaborado com a finalidade de impulsionar a geração de emprego, renda, a produção de alimentos, o crescimento econômico e a arrecadação tributária federal, particularmente, com maior taxação dos ganhos de empresas estrangeiras e a queda da inflação”, explica o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista.

“Tais projetos deveriam ser aprovados pelo Congresso Nacional e o comício marcou o lançamento da mobilização política no âmbito da sociedade em defesa de sua aceitação pelos congressistas e os partidos representados no poder legislativo federal”, acrescenta.

No âmbito fiscal, por exemplo, havia a ideia de limitar a remessa de lucros para o exterior, principalmente por parte das empresas internacionais, e tornar mais eficaz a capacidade de arrecadação do Estado. A reforma eleitoral almejava dar direito de voto aos analfabetos. Na educação, a ênfase seria na valorização das carreiras do magistério, o combate ao analfabetismo e a multiplicação nacional das experiências empreendidas com sucesso pelo educador Paulo Freire. A reforma bancária visava a garantir mais crédito aos produtores.

“As reformas de base tinham a finalidade de dinamizar a vida econômica e social”, contextualiza o historiador Martinez. “Direitos sociais, planejamento e expansão da infraestrutura urbana, de transportes e de energia, investimentos públicos, melhores salários, maior qualidade de vida e de trabalho, sobretudo no campo. Entre estas proposições a que mais despertou oposição e mobilizou a reação foi a reforma agrária. Os conflitos sociais no campo e, particularmente, a violência sistemática dos grandes donos de terras contra líderes sindicais e trabalhadores rurais era diária e crescente.”

Apoio popular e decretos

Se os parlamentares estavam reticentes a darem o voto de confiança necessário a implementação das reformas, o comício foi interpretado pela ala governista como um sinal claro de apoio popular. “Discursaram todos os grandes dirigentes políticos das esquerdas da época. Foi um comício que estabeleceu com muita clareza o programa das reformas de base”, nota Reis.

“É difícil trabalhar com o conceito de opinião pública. O que podemos afirmar é que realmente o comício mobilizou uma significativa parcela daqueles que apoiaram o governo no Rio de Janeiro”, avalia o historiador Leonardo Leal Chaves, pesquisador na Universidade de Coimbra, em Portugal.

Martinez ressalta que “uma parte importante da população urbana das duas maiores cidade do país”, Rio e São Paulo, era simpática às reformas de base. “Sindicatos, operários, trabalhadores e bancos e do comércio, estudantes secundaristas e universitários, servidores públicos, professores, profissionais liberais eram os segmentos mais organizados, mobilizados e interessados nas reformas”, detalha.

Nesse sentido, o historiador avalia que o Comício da Central pode ser visto como uma “grande iniciativa governamental e reformista” para criar um “amplo movimento de apoio nas áreas urbanas”.

Lançando mão de prerrogativa de seu cargo, Jango assinou dois decretos durante o comício — a Constituição então em vigor, de 1946, dava a ele tal soberania frente ao Congresso. O primeiro deles, considerado simbólico, desapropriava as refinarias de petróleo que ainda não estavam sob o controle da Petrobrás. O segundo regulamentava localização e dimensão de terras subutilizadas que estariam então sujeitas à desapropriação para a reforma agrária.

“O decreto que estabelecia a reforma agrária às margens das rodovias foi assinado no próprio comício. As demais agendas de reforma, como a fiscal, eleitoral e educacional, foram anunciadas”, diz Chaves.

No palanque, o presidente revelou ainda que sua equipe estava preparando uma reforma urbana. “Isso assustou muito os conservadores”, diz Reis.

Golpe de 1964

Nas semanas seguintes a este evento, desdobramentos de resistência conservadora ocorreram no país, como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em São Paulo. Na virada do mês, ocorria o golpe que colocaria o país na ditadura militar por 21 anos.

“Há sim uma relação entre o comício e o golpe. Todavia, não creio que o golpe se deu em função do impacto do comício sobre a sociedade civil. O golpe vinha sendo gestado há tempos. O máximo que poderia afirmar é que o Comício da Central acabou por desencadear a reação dos setores conservadores que se reuniram na marcha em São Paulo”, analisa Chaves.

“Havia um processo de acúmulo de tensões, os partidários das negociações se enfraqueciam cada vez mais em benefício dos polos mais radicalizados”, explica Reis. “O comício foi um elo a mais nesse processo de radicalização, mas não determinou o golpe de 1964.”

Para Martinez, o comício “foi um divisor de águas na política nacional”. “Depois dele, a promoção do golpe de Estado, com a participação das Forças Armadas, o financiamento e o apoio logístico de empresas, era tratada e anunciada abertamente, tornando-se possível de acontecer a qualquer momento.”