06/10/2024 - 12:51
Yarin Ilovich estava à sua mesa de mixagem na madrugada de 7 de outubro de 2023, quando começou o ataque terrorista do grupo palestino Hamas. Um ano depois, ele relembra o momento em que, de súbito, a música parou.O DJ Artifex – o nome artístico de Yarin Ilovich – viajou muito pelo mundo nos últimos meses. Em setembro ele esteve nos Estados Unidos, em agosto tocou no Brasil e, pouco depois, voou para Berlim.
Artifex também acaba de lançar uma nova música: Cyber fever, que celebra um “mundo mágico”, como anuncia uma voz computadorizada, mais colorido, bonito e alegre do que a realidade. Quando toca, Artifex dança e pula no palco ao som das batidas. Quem não sabe o que ele viveu não é capaz de imaginar.
Mas,exatamente um ano atrás, seus olhos viram coisas que dificilmente alguém consegue superar. Ilovich é um sobrevivente do ataque terrorista ao festival de música Super Nova, em Israel, em 7 de outubro de 2023. Ele era o último DJ a tocar no festival, que fazia o público dançar na madrugada do ataque do grupo palestino Hamas – e que súbito fez a música parar.
Em Berlim, ao ser entrevistado pela DW, Ilovich parece nervoso. Ele diz que deu poucas entrevistas até agora, e somente em Israel. Mas pondera que falar inglês talvez o ajude a criar uma distância que ele precisa para contar o que aconteceu no 7 de Outubro sem ter que relembrar todos os horríveis detalhes daquele dia.
Um festival no meio do deserto
Ele se lembra do momento em que começou a discotecar. “Ainda estava escuro”, era o fim da madrugada, mais exatamente 5h35. O horário era perfeito para sua performance pois logo depois a aurora se anunciou, e o céu foi clareando aos poucos. “Esse é um momento especial numa festa de psytrance”, comenta Ilovich.
Psytrance, transe psicodélico, é um estilo de música eletrônica de batidas rápidas nascido em Goa. “Essa mudança da escuridão para a luz tem algo de misterioso. As pessoas se veem pela primeira vez. Você reconhece os sorrisos nos rostos na pista de dança. Isso cria uma energia especial, é um momento gratificante.”
Mais de 3 mil se divertiam ao som dessas batidas psicodélicas no meio de uma paisagem desértica, na manhã do 7 de Outubro. Uma tenda colorida cobria a pista de dança, o local havia sido todo decorado. Vários participantes usavam maquiagem e joias para combinar com suas tatuagens, e muitos haviam tomado drogas alucinógenas. O festival deveria parecer um mundo mágico, uma realidade alternativa – a apenas cinco quilômetros da fronteira com a Faixa de Gaza.
Ele não percebeu os primeiros mísseis disparados de Gaza, alguns minutos antes das 6h30min. Tampouco reagiu quando alguns dos festeiros avistaram paraquedistas descendo em sua direção, a partir de Gaza. Artifex estava inteiramente concentrado na música, na batida certa. “Como DJ, você está cheio de adrenalina, tudo o que sente é a multidão dançando ao som da sua música.”
“Alerta vermelho” às 6h29
Mas aí um dos produtores do festival se aproximou dele por trás e disse em seu ouvido: “Desligue a música!. Estamos em alerta vermelho.” Ao obedecer à ordem, às 6h29, o DJ recebeu uma vaia do público. “Alerta vermelho, alerta vermelho!” gritou o produtor para a pista de dança. Essa cena está registrada em vídeos.
Ilovich relembra que, embora não houvesse quase nenhuma proteção, não houve pânico no início. Em Israel, todo mundo já vivenciou um alarme de mísseis. Mas desta vez eram centenas deles.
Ele logo se ocupou de uma amiga alemã que, ao contrário da maioria dos participantes, já estava tendo um ataque de pânico. Ajudou a ela e também a outros que queriam ir embora de carro. Ele próprio permaneceu no local, até mesmo quando amigos lhe ligaram para dizer que estavam sendo alvejados no caminho. “Eu pensei: ‘Tem pessoal da segurança aqui’ e me senti seguro.”
Por volta das 7h00, terroristas do Hamas e de outros grupos palestinos chegaram ao local do Super Nova. Assim como muitos outros, Ilovich tentou se abrigar nos carros, mas a essa altura o estacionamento já era um caos, com a saída engarrafada, as estradas bloqueadas.
Foram disparados tiros à queima-roupa. Centenas correram para um descampado vizinho, inclusive Ilovich e alguns amigos. “Eles estavam atirando em nós, as pessoas eram atingidas e ficavam pelo chão, algumas caíam porque estavam com medo, outras porque estavam bêbadas”, relembra. Uma amiga que estava correndo com ele começou a vomitar, ele a arrastou e disse que não olhasse para trás.
Em 7 de outubro de 2023, membros do Hamas e outros grupos palestinos da Faixa de Gaza mataram mais de 360 participantes do festival Super Nova, 44 foram levados como reféns para a Faixa de Gaza e inúmeros ficaram feridos. No total, cerca de 1.200 foram mortos no ataque terrorista a Israel, e 251 foram sequestrados e levadas como reféns para Gaza.
Ilovich sobreviveu. Ele e alguns amigos conseguiram chegar ao kibutz Re’im, nas proximidades, onde alguns poucos policiais tentavam afastar os agressores. Ele esperou por horas, escondido embaixo de um carro de patrulha, ouvindo, pelo rádio da polícia, que gente era morta por toda parte, enquanto os policiais temiam pela própria vida. E repetia-se o grito desesperado: “Onde está o Exército?”
Para o DJ, os walkie-talkies “foram a pior coisa”: “Você ouvia ‘Eles estão nos matando’.” Mas os policiais conseguiram levar a ele e vários outros para Ofakim, a 15 minutos de carro, numa viagem “apocalíptica”.
“Carros queimados e cadáveres por toda parte na estrada. Nada além de deserto e cadáveres por toda parte.” Mas Ofakim também estava em estado de guerra. Só na manhã de 8 de outubro ele e três amigos se sentiram realmente a salvo .
O mesmo set, até o fim
Nos primeiros meses após o ataque, Ilovich visitou semanalmente um psicoterapeuta. Mas a melhor terapia para ele foi a música, seu “espaço seguro”, o lugar onde se sente seguro e feliz.
“Nós vamos voltar a dançar” é o slogan formulado pelos sobreviventes do massacre. É um ato de desafio, de resistência, uma maneira de dizer “não vão nos derrotar”. Mas é claro que isso não funciona para todos.
Nas semanas e meses seguintes ao 7 de Outubro, houve vários relatos de violência sexual, estupro e outras atrocidades durante o ataque terrorista ao Super Nova. Muitos sobreviventes do massacre apresentaram sintomas de depressão forte, dizendo que não conseguem mais prosseguir com suas vidas. Terapeutas israelenses registraram vários suicídios.
DJ Artifex se apresentou várias vezes nas últimas semanas para a “Tribe of Nova”, como a comunidade de fãs dos festivais Super Nova se autodenomina. Depois do ataque terrorista, eles se tornaram um grupo de sobreviventes que se reúne regularmente para conversar e tentar curar o corpo e a mente por meio de ioga, meditação e música, dentro do espírito do psytrance, criado por antigos hippies em Goa.
Desses encontros participa também Ilovich, que faz questão de se manter longe das manifestações contra o governo israelense, apesar de deixar claro que não o apoia. Ele quase não acompanha o noticiário, nem sobre a guerra na Faixa de Gaza, nem sobre os reféns que continuam sendo mantidos nesse território palestino.
Ele se diz uma pessoa positiva, que acredita em tempos melhores. Não quer ser visto como uma vítima traumatizada, um abatido. Ele quer ser alguém que ajude os outros, que dê aos sobreviventes do festival a oportunidade de processar os fatos vividos.
E Yann Ilovich não toca simplesmente música psytrance para a Tribe of Nova: muitas vezes ele toca exatamente o mesmo set que teve de interromper às 6h29 do dia 7 de outubro de 2023.
“Para muita gente, é importante me ouvir terminar a apresentação, sem interrompê-la no meio. Elas me dizem que poder me escutar sem o barulho dos mísseis as ajuda a superar aquela experiência.” E o DJ Artifex toca o seu set até o fim, como deveria ter sido, se houvesse mesmo uma realidade alternativa.