09/07/2025 - 15:56
Contra LGBTQ+ e valores liberais: Kremlin está concedendo vistos a conservadores de países ocidentais que buscam um novo lar. Iniciativa serve como propaganda e política demográfica.Russell conseguiu: o australiano obteve o chamado “visto de valores compartilhados” da Rússia. Ele documentou sua visita final às autoridades em seu canal no YouTube, Travelling with Russell. “Agora tenho três anos para morar aqui, encontrar um emprego e me estabelecer”, diz ele para a câmera. Sete semanas após a publicação, o vídeo havia sido assistido por cerca de 45 mil pessoas.
Ele não está sozinho em seu desejo de morar na Rússia. Há muitos outros relatos em redes sociais de expatriados de países do Ocidente que moram na Rússia ou planejam fazer isso. Eles consideram que seus países de origem estão ficando muito liberais em áreas como família, religião, direitos LGBTQ+ e migração, e são atraídos pela perspectiva de viver em uma sociedade mais conservadora.
A autorização de residência da Rússia, informalmente conhecida como “visto anti-woke”, é voltada justamente para esse grupo de pessoas – woke é uma terminologia que significa ser politicamente consciente e comprometido com a luta contra o racismo, o sexismo e a discriminação social.
O visto foi introduzido por decreto do presidente Vladimir Putin em agosto de 2024, que afirma que a iniciativa serve para “fornecer assistência humanitária a pessoas que compartilham os valores espirituais e morais tradicionais russos”.
Cidadãos ou moradores com residência permanente de países europeus, dos Estados Unidos, da Austrália, do Japão e de alguns outros países podem solicitar o “visto de valores compartilhados”.
Eles não precisam provar que falam russo, que conhecem a cultura do país ou que estão familiarizados com as leis locais. No entanto, os candidatos devem declarar que discordam das políticas de seu país de origem. O visto é normalmente emitido para um período de três anos e pode ser renovado.
Qual é o objetivo da Rússia?
A socióloga Katharina Bluhm, especialista em Rússia, afirma que o visto é, “em primeiro lugar, uma política simbólica”, que comunica algo tanto para os moradores do país como para o exterior.
“Com o visto e as histórias positivas de imigrantes ocidentais, a Rússia está mostrando aos seus próprios cidadãos: ‘Olhem, há pessoas que vêm para cá porque nós satisfazemos o que lhes falta no Ocidente decadente. Elas também querem retornar aos valores cristãos ocidentais'”.
Para o Ocidente, a mensagem é: “Vocês podem vir para cá se tudo isso os incomoda tanto. Nós representamos a Europa melhor, a Europa do patriotismo e dos valores tradicionais e papéis de gênero que não existem mais em outros lugares.”
Além do simbolismo, os problemas demográficos da Rússia também desempenham um papel, diz Bluhm. A população vem diminuindo há anos e, apesar dos subsídios do governo, a taxa de natalidade é muito baixa. A guerra de agressão contra a Ucrânia também provocou grandes perdas e mais emigração, especialmente entre os jovens russos.
“Segura para famílias cristãs tradicionais”
Famílias como os Feenstras, que emigraram do Canadá para a Rússia com oito filhos, provavelmente serão mais do que bem-vindas. Eles relatam em detalhes nas redes sociais como é a sua nova vida.
O pai Arend explica em um dos vídeos: “A Rússia é um dos poucos países que ainda são seguros para famílias cristãs tradicionais”. Além disso, ele diz que ficou cada vez mais difícil sustentar sua família no Canadá, enquanto na Rússia a situação financeira deles parece melhor.
Plataformas que auxiliam na solicitação do “visto de valores compartilhados” também anunciam esses benefícios adicionais. O site Russianresidency.org, por exemplo, menciona impostos baixos, educação gratuita, excelente assistência médica e baixo custo de vida.
Tudo isso cai em terreno fértil para algumas pessoas de países ocidentais. Segundo uma porta-voz do Ministério do Interior russo, em maio, nove meses após sua introdução, 1.156 pessoas haviam solicitado o “visto de valores compartilhados”, sendo os alemães o maior grupo (224). Mas isso dificilmente será suficiente para resolver o problema demográfico da Rússia.
Vídeos de expatriados fazem parte da propaganda?
O fato de o número de expatriados ocidentais na Rússia às vezes parecer tão grande também pode estar relacionado ao fato de a mídia estatal russa divulgar amplamente o que considera casos de sucesso. As atividades de influenciadores que emigraram do Ocidente para a Rússia por convicção moral também podem ser parcialmente apoiadas ou mesmo dirigidas por Moscou.
Em março, a revista online Important Stories relatou que a emissora internacional russa RT – sujeita a sanções em muitos países ocidentais – financia vídeos nas redes sociais em que expatriados elogiam a Rússia e criticam o Ocidente. De acordo com a reportagem, funcionários da emissora estatal russa estão por trás do canal Russian Road no YouTube, que exibe esses vídeos.
Isso não seria uma surpresa: em outras áreas, a Rússia teria recorrido a métodos ainda mais drásticos. Na campanha eleitoral dos EUA, por exemplo, atores teriam sido contratados para gravar vídeos falsos.
A especialista Bluhm vê o “visto de valores compartilhados” nesse contexto da máquina de propaganda russa, assim como uma tentativa de trazer mais estrangeiros “certos” para o país a fim de combater os problemas demográficos.