12/09/2025 - 9:23
Perseguido por militares, cantor fugiu para o exílio no auge de sua carreira, a qual abandonou quando voltou para o Brasil. Depois de 50 anos longe dos palcos, fez um último show em 2018.No dia 22 de março de 2018, Geraldo Vandré subiu ao palco da Sala de Concertos Maestro José Siqueira, no Espaço Cultural José Lins do Rêgo, em João Pessoa (PB). Fazia quase 50 anos que o cantor e compositor paraibano, então com 82 anos, não se apresentava no Brasil.
Sua última apresentação acontecera no dia 12 de dezembro de 1968, em Anápolis (GO). No dia seguinte, com a decretação do AI-5, o mais violento dos Atos Institucionais do regime militar, Vandré entrou para a clandestinidade e, 65 dias depois, fugiu do país, em 16 de fevereiro de 1969.
Meio século depois, Geraldo Vandré voltou aos palcos acompanhado, entre outros músicos, pelo maestro Luiz Carlos Durier e pela pianista Beatriz Malnic. O regente da Orquestra Sinfônica da Paraíba ainda tentou incluir no show Disparada, clássico de Vandré, mas não conseguiu. Em compensação, Vandré fechou a noite com seu maior sucesso: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora, não espera acontecer…”.
“A plateia foi ao delírio”, exulta Malnic. “Até parecia ensaiado”, empolga-se Durier.
A ideia de se apresentar na Paraíba, sua terra natal, partiu do próprio Vandré. No dia 1º de janeiro de 2017, ele bateu à porta de Beatriz Malnic, que conhece desde 1982, e a convidou para participar de sua volta aos palcos brasileiros. Os produtores gostaram tanto do projeto que sugeriram a Vandré que ele se apresentasse em um teatro grande, com capacidade para três mil pessoas. O cantor recusou a proposta; preferia algo mais intimista.
Por essa razão, em vez de um show, se dispôs a fazer dois: um no dia 22, outro no dia 23. No entanto, impôs uma condição: incluir temas instrumentais e poemas inéditos no setlist. No dia 23 de outubro, Vandré se apresentou também em Sorocaba (SP).
Os ingressos, gratuitos, se esgotaram em poucos minutos. Muitos espectadores, não satisfeitos em assistir a uma rara apresentação ao vivo do artista, levaram LPs para ele autografar. Entre 1964 e 1973, o cantor lançou cinco álbuns de estúdio: Geraldo Vandré (1964), Hora de Lutar (1965), 5 Anos de Canção (1966), Canto Geral (1968) e Das Terras de Benvirá (1973).
“Com carinho e paciência, conversava com cada pessoa e autografava todos os discos”, relata Malnic. “Percebi um afeto genuíno pelo público. Uma vontade imensa de estar ali naquele momento”.
“Morte em vida”
Pra Não Dizer que Não Falei de Flores, ou simplesmente Caminhando, é, sem dúvida, a canção mais famosa de Geraldo Vandré. Mas, não é a única. O jornalista Jorge Fernando dos Santos, autor da biografia Vandré – O Homem que Disse Não (Geração Editorial, 2015), aponta a já citada Disparada como uma de suas favoritas.
“Engajado nas questões sociais, Vandré foi o símbolo de uma época”, define. “Ícone dos grandes festivais de MPB, foi um homem que desafiou o regime militar e pagou um preço alto por isso.”
A historiadora Dalva Silveira, de Geraldo Vandré – A Vida Não Se Resume em Festivais (Fino Traço, 2011), elege outra, Porta-Estandarte, como a sua predileta. “Foi a primeira vez que Vandré venceu um festival”, recorda ela, referindo-se ao 2°Festival Nacional de Música Popular Brasileira, realizado entre abril e junho de 1966 e transmitido pela extinta TV Excelsior.
“O suposto enigma sobre as razões de sua ‘morte em vida’ se assemelha ao mistério relacionado aos porões da ditadura. Muitos dos crimes cometidos ainda não foram esclarecidos. Não sabemos o que aconteceu com muitas de suas vítimas”, afirma Dalva.
O jornalista Vitor Nuzzi, de Geraldo Vandré – Uma Canção Interrompida (Kuarup, 2015), indica, entre outras canções, Réquiem para Matraga. Composta para o longa-metragem A Hora e A Vez de Augusto Matraga (1965), adaptação de Roberto Santos para o conto homônimo de Guimarães Rosa, foi incluída na trilha de outros filmes, como Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e Homem com H (2025), de Esmir Filho.
“Um dos mais importantes artistas de sua geração, Vandré precisa ser conhecido pela obra, e não pelas lendas”, afirma Nuzzi. “Muita gente acredita, até hoje, que Vandré foi torturado fisicamente. Não foi. Mas, não podemos esquecer que ser forçado a deixar sua pátria, e dela ficar distante por mais de quatro anos, é outro tipo de violência.”
Quem é Geraldo Vandré?
Há 90 anos, Geraldo Vandré nasceu Geraldo Pedrosa de Araújo Dias. Foi no dia 12 de setembro de 1935, em João Pessoa (PB). “Seu sobrenome artístico é uma abreviação do sobrenome do pai, o médico José Vandregíselo”, explica o poeta Luiz Carlos Bahia, que conheceu Vandré em 1977.
No Rio de Janeiro, onde passou a morar em 1951, o paraibano Geraldo Vandré se formou em Direito pela Universidade do Estado da Guanabara (atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro), integrou o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE) e começou a compor com grandes nomes da MPB, como Carlos Lyra (Quem Quiser Encontrar Amor) e Baden Powell (Se a Tristeza Chegar), entre outros.
Em 1965, Vandré estreou no 1° Festival Nacional de Música Popular Brasileira, exibido pela extinta Excelsior. Como intérprete, defendeu a música Sonho de Um Carnaval, composta por um estudante de arquitetura chamado Chico Buarque de Hollanda.
“Arrastão [música de Edu Lobo e letra de Vinicius de Moraes] arrebatou a plateia, e minha música ficou sumidinha”, admite Chico em depoimento a Renato Terra e Ricardo Calil no documentário Uma Noite em 67 (2010). “Tem até uma história engraçada: ninguém sabia quem eu era, mas, no intervalo, tocaram as músicas todas. Eu vi o Braguinha comentando assim: ‘Mas essa última é uma droga!’. Era a minha”, cai na risada.
A era dos festivais
De 1966 a 1968, Vandré participou de sete festivais. Em dois deles, tirou o primeiro lugar, com Porta-Estandarte, e Disparada. No 2° Festival da Música Popular Brasileira, inclusive, houve empate técnico entre Disparada, cantada por Jair Rodrigues, e A Banda, defendida por Nara Leão.
Noutros dois, ficou em segundo lugar, com O Cavaleiro, que perdeu a primeira colocação para Saveiros, de Dori Caymmi e Nelson Motta, e com Pra Não Dizer que Não Falei de Flores, que levou a pior para Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque. Saveiros foi interpretada por Nana Caymmi e Sabiá por Cynara e Cybele, do Quarteto em Cy.
Hino contra a ditadura
Das músicas acima, nenhuma incomodou tanto a ditadura quanto Pra Não Dizer que Não Falei de Flores. A ponto de o general Sizeno Sarmento telefonar para Walter Clark, diretor-executivo da TV Globo, e exigir que a música de Vandré não ganhasse o festival. “Não posso impedir o júri de votar”, argumentou. “Problema seu”, decretou o militar. Para alívio de Clark, Sabiá ganhou por 109 pontos a 106.
O 3° Festival Internacional da Canção terminou em 29 de setembro de 1968. Mas, a perseguição a Vandré estava apenas começando. No dia 23 de outubro, o regime militar proibiu a execução de Pra Não Dizer que Não Falei de Flores em rádios e shows.
“Símbolo da luta contra a ditadura, só foi liberada em 3 de outubro de 1979”, afirma Dalva Silveira. “Atemporal, é cantada em passeatas estudantis e movimentos sociais.” Em 2023, manifestantes israelenses cantaram uma versão em hebraico contra o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.
Foi Aracy de Carvalho, viúva do escritor Guimarães Rosa, quem ajudou Geraldo Vandré a fugir do país. É o que revela o jornalista Zuza Homem de Mello no livro A Era dos Festivais – Uma Parábola (Editora 34, 2003). Ela chegou a abrigá-lo em seu apartamento no Rio de Janeiro. Com direito a passaporte falso e disfarce de velho, Vandré atravessou a fronteira com o Paraguai e, de lá, seguiu para o Chile. “Escapuliu sem nunca ter sido preso”, afirma Homem de Mello no livro.
Anos de exílio
Geraldo Vandré permaneceu no exílio de 1969 a 1973. Neste período, gravou um disco na França, Das Terras de Benvirá, e escreveu um livro de poemas no Chile, Cantos Intermediários de Benvirá.
“Vandré deixou o Chile na hora certa. Meses depois, o governo de Salvador Allende foi derrubado pelo regime de Augusto Pinochet. Se tivesse ficado, talvez tivesse tido o mesmo destino de Víctor Jara”, especula Jorge Fernando dos Santos, referindo-se ao cantor e compositor chileno que foi preso e fuzilado logo após o golpe militar de 11 de setembro de 1973.
Quem participou do último álbum da carreira de Vandré foi Marcelo Melo, um dos fundadores do Quinteto Violado. Em 1970, quando o disco foi gravado, ele morava em Paris. “Sempre admirei a obra de Vandré”, admite. “Além disso, somos paraibanos. Eu, de Campina Grande; ele, de João Pessoa.”
Da gravação, Melo não se esquece do clima de desconfiança. “Havia um ‘espião’ dentro do estúdio”, brinca. “Durante todo o tempo, Vandré manteve um gravador ligado, registrando tudo o que a gente falava. Tinha receio que se apropriassem das músicas dele.”
Do exílio, Vitor Nuzzi destaca ainda uma entrevista concedida a uma TV da Alemanha, em 9 de outubro de 1970. Segundo o biógrafo, é o único registro em que Vandré aparece cantando algumas de suas músicas, como Che, homenagem ao guerrilheiro argentino Ernesto ‘Che’ Guevara, e Pra Não Dizer que Não Falei de Flores. “Não há nenhuma outra imagem em vídeo do autor interpretando sua canção mais conhecida”, afirma o jornalista.
Vandré voltou ao Brasil em 1973. Gravado na França em 1970, o álbum Das Terras de Benvirá foi lançado no Brasil pela gravadora Phonogram. Desde então, nunca mais gravou discos. Em 2018, por ocasião dos dois shows em João Pessoa, publicou o livro Poética, versão brasileira de Cantos Intermediários de Benvirá, produzido no Chile durante o exílio.
“A ditadura impôs silêncio a Vandré”, afirma Nuzzi. “Ele se recolheu, mas nunca deixou de criar e compor.”