18/07/2021 - 13:13
Em artigo, o líder russo traça sua imagem do país vizinho: extensão do povo russo, liderado por um governo nulo, marionete do Ocidente. Combater a imaginária “anti-Rússia” virou missão de vida, opina Konstantin Eggert.Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos: assim o presidente da Rússia, Vladimir Putin, intitulou seu opus de 5 mil vocábulos. E ainda mandou logo atrás uma alentada entrevista em vídeo, aparentemente realizada por um funcionário de seu departamento de imprensa. Nunca se viu tal coisa.
No artigo e no vídeo, o chefe do Kremlin recapitula detalhadamente suas ideias favoritas: um povo ucraniano autônomo é algo nunca houve; ucranianos e russos são um só povo; o Estado ucraniano é uma construção artificial, um acaso histórico, e deve-se ser grato à Rússia por permitir que ele exista.
A deposição do ex-presidente (pró-Moscou) Viktor Yanukovich em fevereiro de 2014, prossegue Putin, foi a culminação de décadas de um plano ocidental para criar na Ucrânia o que ele denomina uma “anti-Rússia”, com o fim de manter a Rússia em xeque.
Desde 2014, a Ucrânia não seria soberana, mas sim estaria submetida a “administração externa” – código usado para designar os Estados Unidos, com a União Europeia como vassala. Moscou não tolerará tal estado de coisas, havendo também milhões de ucranianos a quem a situação não agrada, e que anseiam pelo abraço russo.
Suscetibilidade extrema a ofensas reais ou imaginárias
O artigo de Putin porta inequivocamente a marca das convicções dos serviços secretos russos: uma mistura de messianismo imperialista; a sólida crença de que o dinheiro rege o mundo; e bizarras teorias de conspiração.
As redes sociais do país arrasaram a obra putinista já nas primeiras horas após sua publicação. Historiógrafos, jornalistas e sociólogos encontraram um sem-número de contradições, falhas lógicas e falsas afirmativas. Talvez isso motivou os assessores presidenciais a recomendarem a complementação com um vídeo explicativo.
Além disso, o artigo voltou a mostrar que, para o chefe de Estado russo, não existe tema mais importante do que a Ucrânia. Uma nova onda de casos de covid-19 no país, a situação econômica instável, a ameaça do Talibã na Ásia Central: na agenda de Putin, todos esses assuntos só aparecem depois da Ucrânia.
Mas por que agora? O político russo costuma ver a política pela lente das relações pessoais e é notório por sua suscetibilidade a ofensas imaginárias ou reais. Ao que tudo indica, ele está muito irritado com seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky.
Em maio, este colocou em prisão domiciliar o político e empresário pró-russo Viktor Medvedchuk – embora seja até padrinho da filha dele. Medvedchuk é presidente do partido Plataforma de Oposição – Pela Vida, ligado ao Kremlin, que já desde 2014 se opõe a atividades pró-Ocidente por parte da liderança ucraniana.
“Liderança ucraniana” sem nome
Putin jamais cita Zelensky pelo nome: indagado sobre uma possível reunião presidencial, ele rebateu que só se encontrará com “a liderança ucraniana” se esta “ler o meu artigo”. Da mesma forma, ele se recusa a mencionar o nome do oposicionista russo Alexei Navalny: no enigmático universo putinista de sinais e símbolos, essa é uma expressão de hostilidade extrema.
Aparentemente, para Putin o presidente ucraniano é justamente a encarnação dessa “anti-Rússia” que o traiçoeiro Ocidente estaria criando no país vizinho e que, em seu texto, o russo promete combater.
O chefe do Kremlin nega a legitimidade de toda a classe política da Ucrânia, e retorna repetidamente à noção de que o povo ucraniano seria uma coisa, e a liderança da Ucrânia, outra: “Nós (ou seja, a Rússia, na concepção de Putin) amamos o povo, mas não consideramos a liderança ucraniana como políticos, mas sim marionetes do Ocidente.”
Só que vários milhões de ucranianos elegeram democraticamente seu chefe de Estado e seus membros do Parlamento. Não ocorre ao russo que, com tal tom condescendente de “bom colonialista”, ele insulta esses cidadãos.
Desde o primeiro dia da Revolução Laranja, Putin demonstrou sua total incapacidade de compreender que seres humanos tenham livre arbítrio e possam participar politicamente de forma autônoma. Sequer as dezenas de mortos na confrontação com o regime Yanukovich, em fevereiro de 2014, lhe ensinaram essa lição.
Combate à “anti-Rússia”
É também provável que Putin esteja apreensivo com as atividades crescentes da Otan no Mar Negro, e com a cooperação ativa entre a Ucrâna e a aliança. Assim, ele se volta contra o Ocidente, que, de seu ponto de vista, “rege” Kiev. Com promessas e ameaças relativas ao gasoduto Nord Stream 2, entre a Rússia e a Alemanha, e ao fornecimento de gás passando pela Ucrânia, como sempre ele tenta usar a imprevisibilidade para provocar medo em ucranianos e ocidentais.
Ao mesmo tempo, Putin deixa claro o que o aplacaria: a libertação de Viktor Medvedchuk (embora não diga diretamente); negociações diretas, intermediadas por Moscou, com os separatistas da assim chamada “República de Lugansk e Donetsk” – o que equivaleria a um reconhecimento oficial desses territórios do leste da Ucrânia sob controle russo de facto –; e, claro algum tipo de garantia de que a Ucrânia não se filiará à Organização do Tratado do Atlântico Norte.
Em Kiev, ninguém jamais aquiescerá a nenhuma dessas condições. Portanto, em algum momento Vladimir Putin vai agir, seja bloqueando o fornecimento de gás através do território ucraniano, reconhecendo o regime-marionete no leste da Ucrânia, ou até mesmo atacando militarmente o país vizinho.
A luta contra a imaginária “anti-Rússia” se transformou em missão de vida para o líder russo.
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Konstantin Eggert é jornalista da DW. O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.