01/07/2009 - 0:00
Estudiosa do autismo, a norte-americana Temple Grandin (ela própria autista) diz que sua forma de ver o mundo pode ajudar a compreender como pensam os animais. Ao comparar mecanismos do “pensamento” animal com os de autistas, ela aproxima os animais dos seres humanos e lança as bases de uma grande polêmica científica
Quem ainda não parou, tocado no fundo do coração, diante do olhar intenso e meigo de um cão labrador? Se você é ligado em animais, sejam selvagens ou domésticos, certamente já se pegou admirado diante de tanta expressividade e se perguntou: será que eles pensam? E, se pensam, o que pensam? Para a ciência, essa também é uma pergunta recorrente, origem de inúmeras pesquisas, centenas de dúvidas e muitas, muitas controvérsias. Uma delas diz respeito aos novos estudos realizados pela pesquisadora norte-americana Temple Grandin.
Recentemente, ela sacudiu os meios acadêmicos ao afirmar não apenas que os animais pensam, mas também ao lançar uma teoria para explicar como eles o fazem. Mais que isso: Temple deixou cientistas de cabelo em pé quando comparou a mente de um animal à mente de um ser humano autista. Para ela, animais e pessoas com autismo têm a mesma forma de ver mundo e os mesmos mecanismos de “pensamento”.
Absurdo? Pode parecer, embora boa parte dessa polêmica seja amenizada diante do fato de que a própria autora dessa teoria é autista e conhece o assunto de um ponto de vista muito particular, único na história da ciência. Aos 62 anos, Temple faz parte de uma estatística que aponta 20 casos a cada 10 mil pessoas (quatro vezes maior nos homens, de acordo com a Sociedade Americana de Autismo), com vários níveis de comprometimento do cérebro. No caso da pesquisadora, o autismo manifestou-se num grau considerado baixo, o que permite que ela leve uma vida muito próxima dos padrões de normalidade, interagindo perfeitamente com o mundo que a cerca.
O termo autista, que provém do grego (autos significa “de si mesmo”), foi usado pela primeira vez em 1906, pelo psiquiatra Plouller, mas foi entre 1943 e 1944 que os pesquisadores Leo Kanner e Hans Asperger lançaram as bases para o estudo mais sistemático do problema. Hoje, o que se sabe é que o autismo é um transtorno definido por disfunções físicas no cérebro, ocorridas antes dos 3 anos de idade, e caracterizado por perda da comunicação, distúrbios nas habilidades físicas e linguísticas, e em dificuldades na interação social.
Felizmente, nas últimas décadas, vários mitos em torno do autismo foram derrubados. Um deles é o de que pessoas autistas vivem isoladas “em seu mundo”. Na verdade, a falta de comunicação entre autistas e as outras pessoas deve-se às dificuldades que eles têm de estabelecer uma comunicação, muitas vezes até uma simples conversa, dependendo do grau do transtorno.
No caso de Temple, o autismo foi diagnosticado aos 2 anos e, embora ela tenha nascido num tempo em que o tema era muito pouco conhecido, em 1947, seus pais perceberam seu problema e deram estímulo e ensino adequados para ela se tornar uma profissional respeitada no meio acadêmico e científico. Formou-se em psicologia em 1976 e desenvolveu vários trabalhos científicos que vêm ajudando pesquisadores de todo o mundo a entender melhor essa lacuna na medicina. Hoje, possui vários livros publicados e o título de Ph.D. (equivalente ao doutorado no Brasil) pela Universidade de Illinois, nos Estados Unidos.
Portadora de uma forma leve de autismo, Temple Grandin conquistou uma posição respeitável nos meios científicos e acadêmicos. Sua perspectiva de autista lhe proporciona abordagens inovadoras sobre esse transtorno.
Depois de se dedicar à mente humana, Temple se especializou em comportamento animal. Em 1975, fez seu mestrado em ciência animal e mais tarde doutorou-se na mesma área, aperfeiçoando ainda mais seu trabalho com animais e dando os primeiros passos em direção às atuais descobertas. Suas principais ideias sobre o pensamento dos animais estão defendidas no livro Na língua dos bichos, escrito em parceria com a jornalista Catherine Johnson e lançado no Brasil em 2005.
Antes mesmo de seus estudos, a relação de Temple com os animais já era marcante. Quando criança, estudou numa escola especial e descobriu que o contato com animais, em especial os cavalos, auxiliava na superação de vários problemas emocionais. Mais tarde, tornou-se referência mundial no que se costuma chamar hoje de estudos do bem-estar animal. Sua preocupação com eles está presente até na hora da morte, pois projetou um sistema de abate que poupa o gado do estresse e do pânico antes de ser sacrificado. Construído de forma circular e todo coberto, esse sistema é usado por metade dos matadouros dos EUA, pois evita que o gado se assuste com sons e movimentos bruscos vindos de fora e ao mesmo tempo impede que vejam o que há pela frente. Seja como for, o sistema dá certo e ajuda a explicar sua teoria de que os animais enxergam muito mais detalhes do que um humano. Segundo ela, um porco evita atravessar um local por ver poças d’água com reflexos, pois podem parecer coisas assustadoras. Para Temple, isso ocorre também com alguns autistas, mais sensíveis a mudanças insignificantes do ambiente onde vivem. Mas as comparações entre autistas e animais não param por aí.
Para ela, uma das semelhanças entre o funcionamento da mente de um animal e de um autista diz respeito à maneira de processar as informações visuais que chegam ao cérebro. “Pessoas normais veem e ouvem de forma seletiva, com uma ‘peneira’ que filtra o que vai ser realmente compreendido pelo cérebro”, diz Temple. A partir de várias pesquisas com animais em cativeiro, ela percebeu que eles possuem um processo distinto de absorver o mundo que os cerca, que permite acessar todas as informações sensoriais brutas.
Os animais pensam?
Para diversas pessoas, é muito difícil aceitar a ideia de que formas mais inferiores de vida, tais como vermes ou carrapatos, sejam capazes de pensar e exibir consciência, planejamento a longo prazo ou raciocínio abstrato, as marcas fundamentais de uma mente. Mas poucos duvidam de que os grandes símios, primatas antropoides, como gorilas, bonobos, orangotangos e chimpanzés (estes últimos compartilham impressionantes 98% do seu genoma com os seres humanos) possuam coisas que parecem ser pensamento e cultura.
Em artigo sobre a evolução da inteligência humana publicado na revista Cérebro & Mente, o neurocientista paulista Renato M. E. Sabbatini argumenta que a inteligência não é uma propriedade única aos seres humanos. “A inteligência humana parece ser composta de várias funções neurais correlacionadas e que cooperam entre si, muitas das quais também estão presentes em outros primatas, tais como destreza manual, visão colorida estereoscópica altamente sofisticada e precisa, reconhecimento e uso de símbolos complexos (coisas abstratas que representam outras), memória de longo prazo, entre outras.
De fato, a visão científica corrente é que existem vários graus de complexidade da inteligência presente em mamíferos e que compartilhamos com eles muitas das características que previamente pensávamos ser exclusivas do ser humano, tal como linguagem simbólica, que se comprovou também ser possível em antropoides. O estudo da evolução da inteligência humana forneceu evidências de que parece haver uma “massa crítica” de neurônios de maneira a conseguir consciência semelhante à dos humanos, linguagem e cognição, mas que essas propriedades da mente parecem estar já presentes em outras espécies com cérebros altamente desenvolvidos, embora em forma mais primitiva ou reduzida.
O problema é que os seres humanos sabem que outros humanos têm mentes iguais às suas, porque podemos compartilhar essas experiências entre nós, através da linguagem simbólica. Outros animais são incapazes de comunicar isso diretamente a nós, porque eles não têm linguagem ou introspecção. Entretanto, os estudiosos da comunicação simbólica dos antropoides, tais como os que fizeram experimentos que foram capazes de ensinar orangotangos, gorilas e chimpanzés a usar linguagens artificiais, são rápidos em afirmar que eles possuem fortes evidências de que isso é verdade. “Experimentos com os chimpanzés Koko e Washoe e com o gorila Kenzi demonstraram que eles eram capazes de inventar novas palavras, construir frases abstratas e expressar seus sentimentos através da Linguagem Americana de Sinais (para surdos-mudos) ou linguagens simbólicas baseadas em computadores”, escreve Sabbatini.
“É o que ocorre também no cérebro dos autistas”, afirma a pesquisadora. Segundo ela, pessoas normais usam os lobos frontais e o neocórtex para juntar os estímulos dos órgãos dos sentidos num todo coerente, que estabelece um limite de acesso a essas informações sensoriais brutas. Embora os autistas tenham essas partes do cérebro normais, elas não estão totalmente ligadas ao resto do cérebro, não permitindo essa filtragem. Para ela, o fato de os animais também terem o neocórtex pouco desenvolvido justificaria tal semelhança.
Para Temple, ainda existem semelhanças na forma de se relacionar emocionalmente com o mundo. “Emoções como raiva, medo, curiosidade, atração sexual e laços sociais como a amizade são básicas para ambos, pois tanto animais quanto autistas têm menor capacidade de associar coisas o tempo todo, o que ajuda a manter os sentimentos mais separados”, diz a pesquisadora. “Ambos têm uma percepção mais amena da dor por conta da possível falta de conexão entre a dor e sentimentos como a preocupação e a ansiedade.”
As afirmações de Temple causaram muita polêmica na comunidade acadêmica e, logo após ter lançado seus artigos, cientistas do mundo todo opuseram-se aos pontos de vista ali defendidos. Para muitos, ainda é difícil fazer essa equivalência de funções cognitivas, o que exigiria mais pesquisas tanto do cérebro animal como dos humanos. Para outros, é muito perigoso fazer esse tipo de comparação, que poderia gerar uma distorção do autismo e até mesmo suscitar comparações esdrúxulas entre humanos e animais, ou suscitar o preconceito com os autistas. Os pesquisadores também contestam que os animais tenham acesso privilegiado a níveis básicos de informação sensorial. Defendem que tanto os animais como os humanos processam a informação segundo regras, uma função especializada do hemisfério esquerdo do cérebro observada em ambos.
para temple, o fato de animais e autistas terem o neocórtex pouco desenvolvido ajuda a explicar suas limitações no processo do pensamento
Em sua defesa, Temple diz que uma das causas da discórdia está no modo como as informações são apreendidas pelos não autistas, que pensam com linguagem, enquanto os autistas e animais pensam a partir de dados sensoriais brutos. Ela acrescenta que seu cérebro e o dos animais funcionam como a internet, na qual se pode acessar qualquer tema a partir de uma busca. “No nosso caso, porém, essa busca é 100% visual”, completa.
Diante dessa controvérsia, cientistas se apoiam principalmente no fato de as ideias de Temple não estarem baseadas em provas físicas concretas – em grande parte das vezes, elas se apoiam em sua própria experiência pessoal. No entanto, todos concordam que seu trabalho tem revelado um vasto conhecimento no que diz respeito ao autismo e à percepção dos animais. Enquanto isso, seguimos observando os olhos desses seres que sempre fizeram parte de nossa vida, do nosso meio, e que, muitas vezes, nos ajudam a compreender melhor o mundo. E a nós mesmos.
Para saber mais
• Temple Grandin e Catherine Johnson,
Na língua dos bichos, Ed. Rocco, 2005
• Tim Radford, “Do animals think?”,
Guardian, dezembro 2002
• Sabbatini, R.M.E., “The evolution of human intelligence”.
Brain & Mind, 12, 2001