Herbert von Karajan, Wieland Wagner, Arno Breker: ter lucrado com o regime nazista não impediu diversos músicos e artistas plásticos alemães de continuarem um carreira de sucesso após a Segunda Guerra. Como é possível?Terminada a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha passou por um grande processo de purgação: depois de mais de uma década de domínio do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP) e de loucura coletiva, era preciso colocar a sociedade nos eixos, restaurar a ordem e a justiça.

Então seria de pensar que todos aqueles que se beneficiaram do regime, também na área da cultura, teriam suas carreiras pelo menos congeladas, até segunda ordem. No entanto os exemplos em contrários são muitos.

Albert Speer (1905-1981), arquiteto-mor e mais tarde ministro dos Armamentos de Adolf Hitler, pagou por seu passado nazista com 20 anos de cárcere. Depois, no entanto, nos anos 70, lançou livros de sucesso, justamente sobre sua vida no nazismo.

O diretor e cenógrafo Wieland Wagner, outro favorito de Hitler, fez fama na década de 50 como grande inovador do teatro no Festival de Bayreuth, criado por seu avô, o célebre compositor de óperas Richard Wagner. Herbert von Karajan (1908-1989), duplamente filiado ao NSDAP (uma vez na Áustria e outra na Alemanha), foi celebrado após a guerra como um dos maiores maestros de todos os tempos.

A “Lista dos Talentos Divinos” de Hitler

Compositor Richard Strauss (1864-1949), regente Wilhelm Furtwängler (1886-1954), escultores Arno Breker (1900-1991) e Richard Scheibe (1879-1964): todos eles prosperaram com o nazismo, porém, com raras exceções, prosseguiram suas atividades, praticamente sem ruptura, após a queda do regime.

Seus nomes constavam da “Lista dos Talentos Divinos” (Gottbegnadeten-Liste), de 36 páginas, que em 1944, pouco antes do fim da guerra, Hitler ainda encomendou a seu ministro da Propaganda, Joseph Goebbels. Essas personalidades culturais privilegiadas desfrutavam de proteção especial, ficando isentas do serviço militar.

Quem era tão próximo assim do líder nazista teve que se submeter a um processo de desnazificação, a partir de 1945. Wilhelm Furtwängler só pôde voltar a reger a Orquestra Filarmônica de Berlim após dois anos de interdição profissional. A diretora do Festival de Bayreuth Winifred Wagner teve que renunciar ao cargo – retomado alguns anos mais tarde por seus filhos Wieland e Wolfgang.

“No âmbito da democratização, havia um procedimento de segurança, em que os implicados tinham que preencher formulários muito detalhados para determinar quem podia permanecer em qual profissão”, explica a historiadora Hanne Lessau. A regra se aplicava em especial aos funcionários públicos e detentores de cargos altos. Quem apresentasse dados falsos, por exemplo sobre a filiação ao NSDAP, era severamente punido, sobretudo pelos aliados americanos.

O caso Wieland Wagner

O homem de teatro Wieland Wagner (1917-1966) também constava da “Lista dos Talentos Divinos” do regime nazista. Seu avô, o compositor Richard Wagner, fundara em 1872 o Festival de Bayreuth, exclusivamente para a encenação de suas próprias óperas. A direção passou para seu filho Siegfried em 1908, e com a morte deste, em 1930, foi assumida pela nora, Winifred. O casal já apoiava Hitler desde a década de 20, antes que ele tomasse o poder.

O líder nazista “tinha as mais afetuosas conexões familiares”, conta Sven Friedrich, diretor do Museu Richard Wagner, de Bayreuth. “O primogênito Wieland era o centro das atenções e pessoalmente privilegiado por Hitler.” Mais tarde o artista se revelaria um representante típico de sua geração: “Ele fez exatamente o que milhões de seus contemporâneos fizeram: recalcar tudo. Depois da guerra, dizia sempre: ‘Hitler é assunto encerrado para mim.'”

Em seu livro Entnazifizierungsgeschichten (Histórias da desnazificação), Hanne Lessau trata da margem de ação que tinham os implicados, contrapondo-se à ideia de que o indivíduo seja totalmente impotente num sistema totalitário. “No sentido negativo, tinha, por exemplo, quem usasse sua posição para passar à frente dos outros. Mas também havia os pequenos atos de resistência, como dar secretamente pão aos trabalhadores forçados.”

Wieland Wagner foi um dos que usaram o sistema nazista em favor próprio, conta o especialista Sven Friedrich: para se livrar de um concorrente, o bem-sucedido cenógrafo Emil Preetorius, denunciou-o às autoridades. No entanto saiu do processo de desnazificação apenas com uma multa, e em 1951 assumiu com o irmão Wolfgang a direção dos festivais wagnerianos, e, com seus cenários despojados e abstratos, fundou a nova Bayreuth.

Como lidar hoje com os “Talentos Divinos”?

Ao organizar a exposição A lista dos “Talentos Divinos” – Artistas do nacional-socialismo na República Federal da Alemanha, em 2021, Wolfgang Brauneis constatou que numerosas personagens dos meios artísticos da era nazista continuaram atuando profissionalmente como artistas plásticos no país.

“A nova cena artística progressista na verdade os ignorava. Porém, mesmo depois de 1945, esses artistas receberam uma enorme quantidade de encomendas para o espaço público, em prefeituras, escolas, teatros ou hospitais.” Seu passado não era nenhum grande obstáculo, até porque alguns dos contratadores também tinham um histórico ligado ao nazismo, explica o historiador.

Artistas como Willy Meller (1887-1974) ou o pintor e designer Hermann Kaspar (1904-1986) se beneficiaram de ambos os sistemas, e praticamente não houve protestos contra eles: “Ninguém se apresentou para intervir nos registros da história da arte ou na crítica artística”, observa Brauneis.

Se, por um lado, Meller criou a escultura monumental de um portador de tocha para o complexo arquitetônico nazista Ordensburg Vogelsang; por outro ganhou com sua Mulher de luto o concurso para o Memorial de Oberhausen.

O curador considera especialmente questionáveis a entrega, a artistas da era nazista, de encomendas para locais em memória das vítimas do regime, como é o caso da Mulher de luto: “A gente está diante do primeiro centro de documentação, inaugurado em 1962 em Oberhausen, e aí é desvelada uma figura monumental esculpida por um dos principais representantes do nacional-socialismo. É incompreensível.”

Entretanto hoje em dia encontra-se ao lado dessa escultura uma enorme placa explicativa, esclarecendo as circunstâncias. “Desse modo, a obra em si não fica tão central”, comenta Wolfgang Brauneis. Para ele, trata-se de um exemplo positivo de processamento da história – mas infelizmente raro.

Sua mostra sobre os “Talentos Divinos” despertou grande atenção sobre o assunto, resultando em apelos para as prefeituras contribuírem ao esclarecimento do público sobre as obras de arte problemáticas. Contudo o historiador diz ter a impressão de que “três anos mais tarde, tudo isso caiu para segundo plano”

“Deixa-se que essas esculturas fiquem expostas, sem documentação. Se nada for feito, então uma ou outra poderia ser realmente retirada. Senão esses artistas vão continuar sendo celebrados com essa exposição no espaço público.”