01/04/2008 - 0:00
Com o cair da noite, os marinheiros colocam o farol para funcionar, uma missão imprescindível para que não haja acidentes marítimos na região costeira de Santos.
Uma ilha não é uma porção de terra cercada de água por todos os lados. Ao menos, não a Ilha da Moela, que fica no litoral paulista, a cerca de 100 quilômetros da capital. Uma ilha é um mar de solidão assentada em 100 metros de rocha que saltam do mar para assolar três homens que olham as luzes do continente e buscam, em uma delas, as suas esposas e filhos. Eles lhes enviam um sinal, a luz do farol, que não pára de girar a noite inteira, como que para compensar a saudade que dura meses, anos, mas que é amenizada a cada 23 dias, quando têm licença para ir ao continente e passar uma semana com a família.
Sargento Robson Monteiro, 41 anos, 25 de Marinha e oito como faroleiro na Moela; cabo Cristiano, 29 anos, 11 anos de Marinha e oito meses como motorista na Moela; e sargento Joselito, 42 anos, 25 de Marinha, dez meses como telégrafo/comunicador na Moela. Vidas que se perdem nos 177 anos de existência do mais antigo farol do litoral paulista, o segundo mais antigo do Brasil.
A construção de dez metros de altura consome, sem piedade, a vida daqueles que vivem para alimentá-la: faroleiro, motorista e comunicador, cuja função desde 1953 é enviar informações sobre o clima para uma estação de pesquisa meteorológica no Rio de Janeiro. Quem exercia essa tarefa era o sargento Valério. Devido a problemas de pressão alta, ele foi substituído pelo sargento Joselito, o atual comunicador.
Antigo sistema de engrenagens que movimentava as luzes do farol
Os militares vivem a dez milhas marítimas (18 quilômetros) do continente e se relacionam com o mundo por meio de três geradores a diesel que se revezam para garantir energia, telefone e internet na ilha.
“Bem-vindos!” Monteiro saúda os visitantes e, com um sorriso, os ajuda a firmar os pés na rocha, onde a pequena embarcação tenta atracar numa teimosa briga com as ondas do mar. Os pulos de alegria de Amendoim complementam a recepção do sargento. Amendoim é um cão que não se sabe cão porque nunca viu um igual.
COM POUCOS MESES, o cachorro veio para a ilha fazer companhia ao sargento Robson Ladislau. Ele era o encarregado da comunicação, mas já não mora mais lá. “Além do Amendoim, há o burro, que você não conhecerá porque, assim que ele vê embarcações se aproximando, some. Foge do trabalho pesado de carregar mantimentos ilha acima, numa caminhada íngreme sob o sol”, conta Monteiro.
Lá em cima, o farol se perde em meio à visão do mar e da plataforma de concreto que o rodeia, onde quatro casas foram construídas – três para abrigar os únicos moradores e uma para a estação de controle. Mas, mesmo sendo a maior, a casa de Monteiro não foge da simplicidade que marca as demais.
Vista geral da ilha e dos prédios utilizados para pesquisa
Quartos com a pintura estufada pela maresia trazem sobre as camas lençóis com flores azuis e marrons. Nas janelas, cortinas cujo branco não saiu ileso à ação do tempo, que o amarelou. Tempo que fixa Monteiro, crava sua saudade na rocha da ilha e cobre as paredes de seu quarto com imensos retalhos feitos com fotos dos filhos, esposa, amigos e familiares.
A Ilha da Moela é espaço de quem compreende os primórdios da humanidade, quando o homem emitia sinais luminosos por meio de grandes fogueiras acesas nos cumes das colinas ou morros litorâneos: “Aqui há um porto, aqui há um homem!”, dizia a luz aos navegantes que retornavam do mar. Séculos se passaram, esse ritual ganhou o nome de farol por conta da Ilha de Faro, em Alexandria, no Egito, onde a primeira torre luminosa foi construída 285 anos antes de o nosso calendário cristão ter início.
Cem metros acima do mar é o tempo vertical que coloca a ilha e quem está nela além do lá fora. Como era navegar em 1830, quando o farol foi construído? O Moela é filho dos faróis do início do século 19, numa série iniciada em 1820, com o Farol da Barra, no Rio Grande do Sul; seguida pelo Picão, em 1822, no Recife; depois pelo Farol da Ilha Rasa, em 1829, no Rio de Janeiro; e o da Moela.
Nesse período, James Watt já havia inventado o motor a vapor e caminhávamos para a Revolução Industrial. Um tempo diferente de quando o Brasil inaugurou seu primeiro farol em 1698, o Farol de Santo Antônio, na Bahia. Nessa época, os navegadores lidavam com os mitos do mar e os monstros marinhos não queriam ser vistos. Por isso, davam à tempestade ganas de dilúvio.
Nuvens poderosas parecem ignorar que hoje os tempos são outros. Elas se aproximam indicando que uma tempestade está prestes a despencar na ilha. “Nos dias de temporal, tem gente que sobe na mesa e fica rezando”, diverte-se Cristiano, alusão feita ao ausente Valério. Santa Bárbara dos ventos e tempestades se prostra no coração do morro para que nada aconteça à Moela e ao farol que se ergue em seu cume, o velho herói da antiguidade a proteger os navegantes.
O cheiro do bife na frigideira invade a casa. Na mesa, ervilhas, milho, pepino e arroz com salsa. Os quatro homens à mesa não parecem militares. O capitão Manhães passa parte do seu dia estudando as lições do curso de inglês que faz pela internet.
Apesar de não morar na ilha, Manhães também vive longe dos seus, em razão da transferência para Santos. Vê os filhos a cada 15 dias, quando vai ao Rio de Janeiro. “Tenho uma menina de 9 anos e um menino de 10. Sinto falta deles”, diz. Depois do almoço, o silêncio só é interrompido pelo barulho dos ventiladores. “Oito anos como faroleiro. É muita vida”, comenta Monteiro.
A noite se aproxima trazendo histórias de fantasmas que povoam a ilha. Monteiro viu um de quatro olhos vermelhos. “Fomos levar uns visitantes para a embarcação e já era noite quando voltamos. No caminho, eu e um companheiro avistamos olhos vermelhos vindo em nossa direção”, lembra. Ao olhar para o lado, ele só viu o feixe de luz da lanterna que o amigo segurava alvoroçar- se morro abaixo.
“Minhas pernas tremiam e os olhos vermelhos continuavam a se aproximar; apenas a lua clareava o caminho”, prossegue o sargento. Quando o ar lhe faltou por completo, eis que a surpresa se revelou: o burro e sua falecida companheira caminhavam de noite. Com pouca luz, as pupilas se dilataram, daí foi possível perceber o sangue circulando nos olhos dos animais.
Navegadores lidavam com os mitos do mar e os monstros
marinhos não queriam ser vistos
A noite é cortada pelo barulho de fritura e pela conversa animada dos homens, felizes em receber os visitantes. Enquanto frita o filé de frango, Machado ensina como cortar tomate, cheiroverde e pepino para a salada. Casado há 18 anos, Machado tem três filhos e esposa, que optaram por não sair da cidade natal, o Rio de Janeiro. “Eu os vejo a cada 15 ou 30 dias. O difícil mesmo é quando a noite chega e a saudade parece não caber dentro do peito.”
MAIS DO QUE PEDRAS e histórias, a Ilha da Moela guarda vida que salta aos olhos, mesmo num dia atípico para seus habitantes. “Nossa rotina é mais pesada. Almoçamos juntos, não há tanta conversa, não há por que enfeitar tanto a mesa”, observa Cristiano. A noite cede lugar à madrugada e o peso de estar só ergue os olhos em direção ao horizonte: a linha que traz esperança é a mesma que traz saudade.
O mar se torna negro de mistério e de silêncio, feito as águas do inconsciente que reavivam outros fantasmas. É quando Monteiro se questiona se deve continuar ali. “Passei por vários exames e avaliação psicológica antes de assumir o posto. Tenho o perfil e estranho quando vou para o continente”, diz.
“Meus filhos aprenderam a nadar nesse mar”, prossegue. Há algum tempo, os familiares dos moradores da ilha podiam viver na Moela. A esposa de Monteiro, Tânia, cuidava da escola, onde as crianças eram alfabetizadas. Há 11 anos, a permanência dos familiares foi proibida.
Do alto do farol, a sombra negra balança, num movimento que não deixa os novatos sossegarem no sono o cansaço do dia. As pernas traçam os caminhos que o medo produz. Uma aranha peluda se prostra no teto, sua presença se reflete nos olhos de Machado, que riem ao ver o desespero alheio. Árvores, telhados, pedras, elas podem vir de qualquer canto, marchando com suas pernas delgadas e peludas. Aquele inseto de pouco menos de 15 centímetros pode ser um gigante escondido debaixo da cama.
O farol não pode parar nunca, o que torna a manutenção da ilha uma atividade constante. Abaixo, o Guarujá visto à noite, uma imagem que simboliza a saudade de seus moradores.
“Há muitos bichos aqui, mas os piores são as cobras. Elas são venenosas, e até o socorro chegar… Quase pisei em uma delas ao passar debaixo de uma árvore. Desde então, não ponho os pés no mato por nada”, garante Monteiro. Por conta do seu medo de cobras, ele não ousa procurar o lendário tesouro enterrado pelos corsários, no século 16, na mata da Moela, o que não o impede de fazer tilintar e reluzir um valor muito mais interior: o desejo de compartilhar e acolher.
O farol continua a girar, iluminando um raio de 26 milhas náuticas. A complexidade antagônica da função do farol é sua alma. Ela ilumina para alertar e guiar os perdidos. Em troca, recebe a luz do continente, que desorienta e traz tristeza que desata num nó de choro contido. A despeito de serem homens, os habitantes do farol são militares, gente que aprendeu a obedecer, aceitar, adaptar-se. Mas, antes disso, são pessoas capazes de aceitar a proposta de reclusão. “A disposição em aceitar a solidão é pré-requisito”, observa Cristiano, que pretende brevemente deixar a ilha.
Cristiano faz faculdade de pedagogia a distância e um dia será professor de matemática. “Sempre tive facilidade para ensinar. Dei uma aula de duas horas para o filho do Monteiro e ele tirou 10 na prova”, orgulha-se.
À noite, o mar se torna negro de mistério e de silêncio,
feito as águas do inconsciente
Com um filho de 9 e outro de 10 anos, Cristiano não sonha em viver longe dos filhos. Quer acompanhar o crescimento deles e se nega em trazer nos olhos a tristeza culpada que percebe em Monteiro. “Minha esposa apenas encontra o meu apoio pela linha telefônica”, assume o próprio Monteiro.
Num único dia, a Moela reuniu em sua história Monteiro, Cristiano, Joselito, Manhães e Machado. A noite se esvai e a ilha permanece fixa, pacata em um silêncio que espera o canto dos pássaros a deflagrar um amanhecer nublado. O farol apaga as suas luzes e a figura forte e amiga do sargento Monteiro vai se afastando até se tornar um dos pontos que compõem a ilha.
Seu futuro é certo: Cristiano deixará a ilha, assim como o fizeram Valério e outros. Monteiro fica. Estudou para estar ali e não pode recusar a companheira eterna de todo faroleiro, a solidão.
Joselito checa as lâmpadas do farol, mais um trabalho cotidiano.