20/10/2014 - 10:06
Alex Pryor mudou-se de Buenos Aires para a Califórnia de mala e cuia, uma daquelas cuias de estimação que todo argentino usa para tomar suas doses diárias de chimarrão ou, como se diz em espanhol, “mate”. Esse costume chamou a atenção dos colegas da faculdade de engenharia de alimentos. “No começo pensavam que era uma erva ilegal”, diverte-se. Aos poucos, iniciou os curiosos na roda de compartilhamento da bebida, que mais lembra um cachimbo da par.
Foi assim que, na terra das oportunidades, Pryor encontrou um novo mercado para a ilex paraguariensis. Fundou com o amigo norteamericano David Carr a marca de erva-mate Guayakí, mas optaram por um modelo de gócios inovador que une proteção ambiental e geração de renda para comunidades indígenas e agricultores do Brasil, Paraguai e Argentina.
Toda a matéria-prima é orgânica, certifi cada pela Federação do Comércio Justo e plantada à sombra em meio à Mata Atlântica sul-americana, de onde é nativa. A sede da empresa está nos Estados Unidos, principal mercado consumidor, seguido pelo Canadá. A Guayakí vende atualmente 400 toneladas por ano, fatura US$ 24 milhões e suas ações valorizam acima da média do mercado, de 14%.
Nesta entrevista à PLANETA, o jovem empreendedor conta os diferentes cenários que encontrou nos três países, suas conquistas e as metas ambiciosas para 2020: abranger 60 mil hectares de floresta
e envolver mil famílias na produção.
Como começou o seu envolvimento com a erva-mate?
Há 15 anos trabalhamos com os índios ache-guayakis do Paraguai, a última etnia de caçadores da Mata Atlântica. Eles foram nossos professores em termos de trabalho com comunidades. Quando chegamos vimos muita pobreza: pessoas sem roupa e sem banheiro, vivendo em casebres. Mas este era o ponto de vista do homem branco. A riqueza espiritual e cultural deles já era muito grande. Todos mostravam alegria enorme, o contato sempre foi pródigo de abraços, as crianças corriam e brincavam felizes. Isso facilitou a implementação de um trabalho conjunto para a produção da erva-mate na floresta. Nossos sonhos eram compartilhados por eles: queríamos produzir com sistemas agroecológicos de longo prazo, para as próximas gerações, sem destruir a floresta, com rentabilidade. As necessidades de curto prazo eram muitas: alimento, casa, saúde. Mas a Guayakí não podia solucionar esses problemas. Outras ONGs nos apoiaram para atender às necessidades de curto prazo.
Que transformação aconteceu na comunidade?
Foram muitos os benefícios alcançados. Um dos mais importantes foi que os guayakis receberam o título da terra onde vivem, por meio de uma lei promulgada e votada no Congresso do Paraguai. Isso foi possível por vários motivos, um deles porque era uma comunidade de caçadores- nômades do Paraguai que conseguiu exportar erva-mate orgânica certifi cada como “comércio justo”. Eles deixaram de ser “uns índios que estavam lá”, no típico preconceito dos brancos. O trabalho conjunto com várias organizações permitiu essa mudança.
E como é trabalhar no Brasil?
Estamos há seis anos no Brasil. Começamos com agricultores familiares no município de Turvo, perto de Guarapuava, no centro do Paraná. Foi muito difícil chegar nos índios. Durantes os três primeiros anos me impediram. Diziam que era impossível, que só com autorização da Funai. Um dia, decidi que ia mesmo assim. Disseram que eu ia ser preso. Respondi que não importava, que voltaria com uma história divertida para contar para os netos. Havia desconfi ança. Mas ser argentino ajudou a quebrar um pouco o gelo e os preconceitos, e os índios fi caram curiosos para saber o que um estrangeiro fazia. Comecei a fazer um workshop participativo com os guaranis e os caingangues, pra ver quais eram seus desafi os, fortalezas e sonhos. Fomos construindo um vínculo horizontal, sem concentração de poder, sem assimetria. Formou-se uma mesa de diálogo e um conselho que representa as comunidades, o mesmo processo que seguimos no Paraguai. Só então começamos a produção, como consequência da sintonia. Hoje trabalhamos em volta da Terra Indígena Marrecas, nos municípios de Turvo e Guarapuava, no centro do Estado do Paraná, com 112 famílias da etnia caingangue e 35 famílias guaranis. Atualmente, 80% da nossa erva vem do Brasil.
Foi difícil obter a permissão da Funai?
Antes era muito burocrático, impossível, mas agora, melhorou bastante. A presidenta Dilma recentemente assinou um decreto para fomento do desenvolvimento das comunidades indígenas do país. Para mim, a iniciativa contém muitos riscos e encobre interesses. O discurso subjacente é o de propiciar o desenvolvimento econômico, mas tenho dúvidas. Vejo risco de a soja entrar nas comunidades do Paraná e vejo projetos intrusivos como a usina Belo Monte. Nós entramos nas comunidades como um aditivo técnico, ao lado da Universidade Federal do Paraná e com estudantes fazendo estágio.
Que realidades você encontrou nos três países?
No Brasil, existe excesso de assistencialismo. Pelo menos, é o que eu vejo. Como as terras indígenas são de propriedade do Governo Federal, pela lei dos serviços ecossistêmicos ele repassa verba para os municípios que possuem reservas legais. Trabalhamos em 16 mil hectares de floresta, que geram R$ 2 milhões por ano em benefício aos serviços ecossistêmicos. Com isso os índios têm casas tradicionais, serviço público de iluminação e água e escolas maravilhosas, com professores e diretores excelentes, vindos de povoados vizinhos. Também recebem Bolsa-Trabalho e Bolsa-Alimentação. Mas a pobreza cultural é grande. O maior índice de suicídio entre jovens no Brasil está nas comunidades indígenas guarani-kaiowá, do Mato Grosso, que estão perdendo os valores culturais.
E na Argentina?
Infelizmente, a situação é mais complexa. Atuamos há dez anos na Argentina, mas trabalhamos só com três produtores familiares. Há pouca abertura entre agricultores e índios. A ditadura argentina foi duríssima e rompeu com o tecido social. Existe uma desconfiança muito grande. Eles estão se recuperando, mas leva tempo. Atualmente, o país está em uma situação macroeconômica muito difícil. Os preços estão todos regulados, quase como na Venezuela. Mas acho que isso é momentâneo. Como há pouca abertura para atores sociais, criamos a Fundação Agroecológica Iguaçu (no lado argentino do Parque do Iguaçu), voltada para educação e pesquisa de sistemas agroecológicos.
Como é a dinâmica dos negócios entre pequenos agricultores e indígenas?
Podemos envolver todas as famílias da comunidade, mas não encorajamos vender mais de 50% da produção para a Guayakí, senão perderíamos a relação horizontal e o negócio seria verticalizado. Nós nos pautamos pelo princípio da ética do cuidado essencial definido por Leonardo Boff. Não sou eu que te ajudo, nós nos ajudamos todos. Trata-se de um princípio de colaboração tipo ganhaganha. Pagamos 25% acima do valor de mercado e mais 10% os produtores recebem de prêmio pela rede da Federação do Comércio Justo. Esse prêmio tem que ser canalizado para um benefício comum da comunidade. Sabe em que os guaranis e os caingangues brasileiros escolhem gastar, todos os anos? Na festa do Dia do Índio. Eles querem celebrar a cultura indígena. O impacto é sobre os valores culturais e não no econômico. As certificadoras de comércio justo, suíças e francesas, opinam que o dinheiro não deveria ir para esse fim, porque é difícil de quantificar o impacto, e sim para comprar livros para a escola. Mas isso eles já têm aos montes.
Como conseguem pagar mais ao produtor?
Primeiro, porque o consumidor paga mais pela erva nos Estados Unidos. Segundo, porque não temos que priorizar o retorno do investimento do acionista. Trata-se de uma visão de longo prazo. Seguimos o conceito de crescimento lento, de não ter pressa. A nossa rentabilidade está acima dos 14% do mercado, porque não estamos preocupados em pagar o investidor. Nenhum dos 55 sócios se interessa por vender a empresa, todos estão dispostos a esperar, então reinvestimos no crescimento, pagando mais para as comunidades. Se os acionistas pensam no curto prazo, a rentabilidade tem que ser rápida e caímos na fórmula de maximizar os ganhos e reduzir os custos.
Como vocês chegaram a esse formato de negócio?
Eu era um estudante de 20 e poucos anos que tinha uma inquietação: se os modelos de conservação e de produção não funcionam, por que não podemos encontrar um ponto de equilíbrio? Porque criar 95% da renda destruindo o planeta e doar 5% para uma escola ou para uma unidade de conservação? Por que não tentamos algo diferente? Eu queria criar uma empresa com premissas diferentes, em que o econômico não fosse o fim, mas sim o meio. E que o fim fosse o benefício social e ambiental. Como disse o papa Francisco, “não há nada de mal com a propriedade privada, desde que gere benefícios públicos”. Fazemos isso: plantamos erva-mate na sombra, trabalhamos com comunidades e fortalecemos seus valores culturais. Está nas mãos delas construir escolas e realizar os sonhos. Preservamos a diversidade biológica, absorvemos carbono e conservamos limpas as bacias hidrográficas. O capital natural fica lá, se regenera e a comunidade também se regenera, porque se valoriza como cultura. Nós viemos de fora, mas tratamos os índios de igual para igual, não com suvenires. As transações não são só econômicas, colocamos emoção e contabilizamos as externalidades emocionais, não apenas as sociais e ambientais. Sem emoções na mesa não estamos vivos, somos celulares, computadores e carros.
A meta atual é chegar a 60 mil hectares e a 1 mil famílias produtoras?
Estamos a uns 40% disso. Hoje temos 16 mil hectares e 150 famílias do entorno da Terra Indígena Marrecas e mais 4,7 mil hectares no Paraguai, com 55 famílias ache-guayaki. Além dos 4,7 mil hectares de 67 pequenos produtores familiares.
Vocês querem crescer 60%. Há mercado para isso?
Há um mercado enorme! Chega até a assustar um pouco. Recebemos muito mais encomendas do que podemos entregar. Um trabalho desse tipo pode levar três anos entre chegar a uma comunidade e comprar o primeiro contêiner de erva.
Quem são os consumidores?
Nosso mercado é formado basicamente por cidadãos norte-americanos e canadenses, principalmente jovens universitários, que buscam um produto saudável amigável com a natureza. Nosso orçamento anual de publicidade é baixíssimo, US$ 30 mil. Participamos de feiras, explicamos o que é o chimarrão, seus benefícios para a saúde e o trabalho que fazemos com os produtores. O que temos visto é que cada um dos consumidores vira um embaixador da erva-mate.