“Só há duas espécies de mulheres: as deusas e as capachos”: essa citação de Pablo Picasso diz muita coisa. E, de fato, a maioria de suas relações – sabe-se de 11 – passou por essa metamorfose. No início ele as endeusava, depois as tratava como escória. Duas delas, Marie Thérèse Walther e Jacqueline Roque, cometeram suicídio após a morte de Picasso.

E não é nenhuma surpresa que as críticas ao superstar da pintura do século 20 sejam cada vez maiores. “Eu acusaria Picasso de ser manipulador, de ter um viés sádico e de ter algum prazer em maltratar mulheres, fazendo a elas promessas e declarações de amor sem qualquer fundo de verdade”, comenta Ann-Kathrin Hahn, curadora do Museu Picasso de Münster, na Alemanha.

Diante disso, são principalmente as mulheres que questionam a curadora sobre se um museu ainda pode celebrar de forma acrítica um artista como esse.

Um gênio sem escrúpulos

Picasso era um gênio sem escrúpulos que faria de tudo em prol de sua carreira – até andar sobre cadáveres. É o que garantem algumas das mulheres que passaram pela vida dele.

De forma quase maníaca, ele eternizou cada uma de suas relações nas suas pinturas, desenhos, esculturas e cerâmicas. Mas, por maior que fosse o entusiasmo inicial, logo ele arrefecia. Atração e rejeição quase sempre seguiam o mesmo padrão.

A primeira amante a registrar memórias ao lado de Picasso foi Fernande Oliver, em 1933, no livro Picasso e seus amigos. Na obra, ela recorda os anos que os dois passaram juntos em Paris, de 1905 a 1913.

Quando Picasso e Oliver se conheceram, em Montmartre, ele ainda era um artista espanhol desconhecido, pobre e com um forte sotaque. Oliver se tornaria um dos principais modelos de Picasso no início da carreira dele, tendo sido retalhada em vários pedaços geométricos.

Nas obras cubistas, nariz, olhos, bochecha e outras partes do rosto são quase irreconhecíveis. Frente e verso são apresentados juntos.

Pintura misógina

Picasso criou verdadeiros marcos da arte moderna com seus retratos de Oliver. Mas ele também a tratava mal, chegando a trancá-la na casa-ateliê no Bateau-Lavoir para impedi-la de posar para outros artistas.

Quando a relação acabou, ele a abandonou na pobreza enquanto iniciava uma nova aventura com Eva Gouel.

No livro Deusas e capachos – as mulheres e Picasso, a jornalista de arte Rose-Maria Gropp investigou as perspectivas das amantes do pintor, pesquisando em diários e outras fontes não publicadas.

Gropp considera a pintura icônica Démoiselles d’Avignon, uma obra importante da fase cubista de Picasso, como uma expressão do desprezo do pintor pelas mulheres.

“É simplesmente inconcebível pensar numa pintura tão catastrófica como Demoiselles d’Avignon, de 1907, sem agressões de seu criador. Não há como. Para mim, porém, também foi interessante como as cinco mulheres encurraladas nessa imagem em tamanho real devolvem justamente essa energia destrutiva”, comenta a jornalista. Para ela, isso significa que Picasso estava ciente do poder dessas mulheres.

Para fora do pedestal

Também a historiadora da arte Abigail Solomon-Godeau vê em Picasso nada mais, nada menos do que um misógino. De uma perspectiva feminista, é necessário se afastar desse tipo de artista, afirma.

Para ela, uma nova perspectiva sobre Picasso se faz necessária. “O que me interessa são as narrativas da história da arte, as narrativas sobre Picasso, sobre o grande e genial mestre. Pois é essa narrativa que é determinante para a interpretação de uma pintura”, afirma.

“A pintura que hoje vemos e que é chamada de Démoiselles d’Avignon não é a mesma pintura que as pessoas de 1907 viram. Nós a vemos, hoje, com outros olhos”, diz. E por isso a obra é questionada de uma maneira que não seria há 115 anos, completa Solomon-Godeau.

Se dependesse dela, Picasso seria derrubado do pedestal em que foi posto. Sua personalidade mediterrânea não serve de desculpa para sua masculinidade tóxica, afirma.

Também a primeira esposa de Picasso, Olga Koklova, com quem ele viveu de 1917 a 1935, foi deformada por ele em suas pinturas até virar um monstro, depois de ser poupada numa fase inicial. Uma pintura mostra Koklova dormindo num poltrona: uma figura grotesca e deformada com uma boca escancarada.

Picasso, promotor da discórdia

Françoise Gilot, com quem Picasso teve dois filhos, Paloma e Claude, descreveu os anos entre 1943 e 1954 em seu livro Minha vida com Picasso. Enquanto Fernande Olivier se viu destituída e empobrecida após a separação, Gilot, que vinha de uma família de posses, era mais madura e financeiramente independente. Ela conseguiu enxergar através de Picasso e não mediu suas palavras em suas memórias.

“Ele estava sempre promovendo discórdia entre as pessoas ao seu redor, jogando uma mulher contra a outra, um negociante de artes contra outro, um amigo contra outro. Ele era mestre em usar uma pessoa como um trapo vermelho e a outra como um touro. Enquanto o touro atacava o trapo vermelho, Pablo era capaz de desferir golpes violentos.”

Françoise Gilot foi a única mulher a deixar Picasso – o que ele nunca perdoou. Por muito tempo, o pintor inclusive se recusou a reconhecer a paternidade de seus filhos com ela.

Picasso humilhava suas mulheres sempre que podia – também em sua arte. Dora Maar, que era considerada mentalmente instável e sofria principalmente com os insultos do artista, provavelmente será para sempre lembrada como a “mulher que chora”. Foi assim, afinal, que ele a retratou em suas pinturas.

Atração e repulsa: a relação com todas as amantes de Picasso seguiu quase sempre o mesmo padrão, diz o diretor do Museu Picasso de Münster, Markus Müller, que, junto com Marilyn McCully, publicou em 2022 o livro Picasso: Mulheres de sua vida. Uma homenagem.

“A filha de Picasso, Maya, certa vez me disse que Picasso deixou suas esposas como alguém que sai à noite para comprar cigarros no bistrô.”

Um reflexo da época?

Tal misoginia e desprezo pelas mulheres é também uma expressão daquela época – e nisso Picasso não estava sozinho. “Sua amizade com os poetas Apollinaire e Paul Éluard aponta semelhanças nesse respeito. Tanto Apollinaire quanto Éluard e Picasso são erotomaníacos e obcecados por sexo”, diz Müller.

Talvez isso também explique por que, independentemente da idade de Picasso, a maioria de suas novas esposas tinha menos de 30 anos quando eles se conheciam, e às vezes nem mesmo eram maiores de idade.

No mais tardar desde o movimento global #MeToo, Picasso passou a ser visto no mundo da arte como um macho obcecado pelo sucesso. Hoje, alguém como ele provavelmente seria descrito, sem pestanejar, como um exemplo de masculinidade tóxica.