Em seu relatório sobre 2020, a ONG Anistia Internacional registra considerável avanço na repressão às liberdades civis no contexto da pandemia de covid-19. Brasil se destaca por crimes ambientais e contra indígenas.Muitos governos instrumentalizaram a pandemia de covid-19 em 2020, a fim de reprimir mais ainda os direitos de seus cidadãos, afirma o relatório do ONG Anistia Internacional (AI), publicado nesta quarta-feira (07/04). Além disso, o novo coronavírus atingiu com dureza desproporcional minorias étnicas, refugiados e mulheres.

Segundo Philip Luther, diretor da AI de pesquisa e advocacia para o Oriente Médio e Norte da África, no nível global a crise sanitária “expôs e exacerbou desigualdades”. “De um modo cruel, os que deram mais foram, muitas vezes, os menos protegidos nesta pandemia: ela teve um impacto devastante sobre os profissionais da saúde.”

Em 2020, a tarefa dos governos seria demonstrar liderança excepcional, a fim de mitigar os efeitos do coronavírus, sobretudo sobre grupos desprivilegiados. A secretária-geral da AI, Agnes Callamard, censurou os dirigentes por deixarem de cumprir essa missão.

Em comunicado de imprensa, apelou por um recomeço radical, a fim de construir um mundo baseado em igualdade, direitos humanos e humanidade: “Precisamos aprender com a pandemia, e nos juntarmos para trabalhar com coragem e criatividade, de modo que todos estejam em pé de igualdade.”

O relatório trata de 149 países. A DW destacou oito exemplos de abusos de direitos humanos denunciados pela Anistia Internacional.

Brasil

O presidente Jair Bolsonaro, notório por seus comentários racistas contra indígenas, liberou a Floresta Amazônica para o desmatamento desde que assumiu o cargo, em janeiro de 2019. No contexto da pandemia, esse processo se acelerou. A polícia também endureceu a repressão aos ativistas ambientais.

De modo geral, a violência policial aumentou no país: a AI registrou pelo menos 3.181 civis mortos entre janeiro e junho de 2020, uma média diária de 17 mortes. A ONG Global Witness classifica o Brasil como a terceira nação mais letal para ativistas ambientais e dos direitos humanos.

Em 2020 os problemas dos indígenas se agravaram, devido tanto à covid-19 quanto ao garimpo ilegal, incêndios florestais e posses de terra, enquanto as autoridades se empenharam para desmontar as instituições que monitoram e protegem essas áreas.

Bulgária

Em sua visão geral, a Anistia Internacional instou os governos a adotarem ação urgente no sentido da justiça de gênero e de proteger membros da comunidade LGBT+ de um retrocesso em seus direitos.

O relatório mencionou especificamente uma agressão homofóbica na Bulgária: em Plovdiv, torcedores de futebol se propuseram “limpar” a cidade de indivíduos sexualmente não conformes, atacando adolescentes que percebessem como LGBT+ e ferindo alguns deles. Plovdiv lançou uma investigação criminal, que no fim de 2020 estava em curso.

No país de Leste Europeu, mais de 70% dos LGBT+ se sentem forçados a esconder sua orientação sexual, de acordo com uma consulta realizada pela Agência de Direitos Fundamentais da União Europeia.

Dinamarca

As leis de moradia discriminatórias do país escandinavo foram mais uma vez denunciadas no relatório da AI, o qual também registrou um aumento das agressões verbais e físicas contra minorias, durante o confinamento anti-covid de março a junho de 2020.

A organização pelos direitos humanos expressou preocupação pelo fato de um regulamento de 2018 sobre moradia social seguir em pleno vigor: nele, áreas contendo mais de 50% de “não ocidentais” são rotuladas como “guetos”, e seus residentes e visitantes estão sujeitos a penas criminais dobradas por certos delitos.

Embora o relatório não faça menção aos planos do governo da Dinamarca de reformar a legislação, recentemente ativistas alertaram que as mudanças propostas reduziriam a 30% a proporção de cidadãos de origens “não ocidentais” nas moradias sociais.

Egito

Sob o regime do presidente Abdel Fattah al-Sisi, as autoridades egípcias têm empreendido repressão brutal da liberdade de expressão, abafando as narrativas críticas ao regime.

O início da pandemia trouxe uma nova forma de cerceamento, contra jornalistas e profissionais de saúde que levantaram ressalvas relacionadas à saúde pública ou se desviaram da narrativa oficial do Cairo a respeito da covid-19. A AI documentou a prisão de pelo menos nove profissionais de saúde sob acusações relacionadas a terrorismo e a “propagação de notícias falsas”.

“Esse é pessoal sanitário que no Egito expressou preocupações de segurança e criticou nas redes sociais a abordagem governamental da pandemia”, explicou Philip Luther, acrescentando que os inquéritos ainda estão em curso. “Isso de certo modo, mostra a realidade mais ampla: no contexto da pandemia, as autoridades reprimiram a livre expressão online e offline.”

Líbano

Mais de oito meses após a devastadora explosão de 4 de agosto de 2020 na capital Beirute, as autoridades libanesas não apresentaram resultados das investigações às famílias dos mais de 200 mortos no desastre. A versão oficial atribui a detonação a 2.750 toneladas de nitrato de amônio estocadas durante anos no porto, mas ninguém foi responsabilizado.

A AI cita documentos oficiais vazados em que, pelo menos dez vezes, nos últimos seis anos, funcionários alfandegários, judiciários, militares e de segurança advertiram os governos sucessivos do perigo representado pelo estoque de substâncias químicas.

A organização de direitos humanos fez ressalvas sobre a falta de independência e de imparcialidade do Conselho Judiciário do Líbano, encarregado da investigação do acidente, o qual “também não tem jurisdição para processar autoridades em exercício ou passadas, inclusive o presidente e seus ministros”.

“Isso é especialmente preocupante neste caso, devido às alegações realmente sérias e chocantes de que órgãos estatais teriam sido responsáveis pelos trágicos eventos”, acrescenta Luther.

México

Seguindo a tendência de aumento da violência doméstica e de gênero durante a pandemia, o México registrou em 2020 os assassinatos de mais de 3.700 mulheres, 900 dos quais estão sendo investigados como feminicídios.

“A violência contra mulheres é uma epidemia de proporções globais. E são as falhas dos governos de priorizar medidas para combater a violência que permitiram que isso acontecesse”, comentou Philip Luther à DW.

Em março último, os protestos do Dia Internacional da Mulher no México atraíram participação sem precedentes, após dois assassinatos brutais, não relacionados entre si e separados por poucos dias. A AI menciona uma mulher de 25 anos, esfolada e mutilada pelo marido, e uma jovem de 17 anos, cujo cadáver foi encontrado num saco plástico.

“Embora não critiquemos medidas de confinamento em si, muitas mulheres ficaram privadas de barreiras intensificadas de proteção e apoio durante aquele período”, explicou o encarregado da AI para pesquisa e advocacia.

Mianmar

Pelo menos 550 civis foram mortos em Mianmar desde o golpe de Estado de 1º de fevereiro de 2021, denuncia a Associação de Assistência a Presos Políticos.

No entanto, antes mesmo de os militares derrubarem o governo encabeçado pela Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, o conflito armado já escalara no país. A AI apontou “sérias violações dos direitos humanos”, incluindo tortura e outros maus tratos de detidos civis nas mãos das forças governamentais, sobretudo contra minorias.

Ataques aéreos indiscriminados mataram e feriram civis em 2020, pondo em risco sobretudo os menores de idade. Em fevereiro, no Dia da Criança, um projétil de artilharia foi lançado contra uma escola primária do estado de Rakhine, ferindo pelo menos 17 alunos.

Os militares birmaneses colocaram em perigo, ainda, a vida de civis ao ocupar escolas e transformá-las em bases temporárias, potencialmente transformando todos os estabelecimentos de ensino em alvos, documentou a Anistia Internacional.

Quênia

O emprego excessivo de força por parte da polícia queniana esteve no foco do relatório da Ai sobre violações de direitos no país subsaariano. Em janeiro, em Nairóbi, a polícia disparou munição viva contra manifestantes pacíficos que protestavam contra as condições deploráveis em seu bairro. Um rapaz de 17 anos foi morto.

A polícia do Quênia também impôs com força letal os toques de recolher para contenção da pandemia de covid-19, matando pelo menos seis cidadãos em apenas dez dias, registra a Anistia Internacional.