14/03/2025 - 12:54
Lázaro Ramos lança livro e diz que, após conscientizar para discriminação racial, agora é preciso sensibilizar. “Isso mexe com as certezas que as pessoas têm e com os lugares que elas acham que têm de direito”, afirma.Oito anos depois de seu best-seller Na Minha Pele, o ator, cineasta, apresentador de TV e ativista brasileiro Lázaro Ramos lança na próxima terça-feira (18/03) Na Nossa Pele – Continuando a Conversa. O novo livro parte de um entendimento coletivo da história da segregação racial, cultural e social que marca o racismo estrutural da sociedade brasileira – com o mesmo tom intimista, em que o autor parte de suas próprias experiências de vida para “bater um papo com o leitor”.
Consagrado ator da cena cultural brasileira, Ramos expõe memórias da sua infância e ressignifica o papel de sua mãe, Célia, em sua formação. Ela era empregada doméstica e em uma das passagens mais marcantes do livro, o autor conta como foi revisitar o apartamento em Salvador onde ela trabalhava – e morava em um pequeno quartinho. Com as condições financeiras proporcionadas pelo seu sucesso profissional ele decidiu dar “uma rasteira na história”, em suas palavras: comprou o antigo apartamento e transformou o espaço em um centro de assistência e acolhimento a vítimas de trabalho análogo à escravidão.
Ramos concorda que essa “vingança pessoal” em busca de uma certa justiça social não é acessível para a maior parte das pessoas. E que ele só conseguiu fazer isso porque ascendeu socialmente. “É por isso que a gente tem de pensar em política pública”, afirma.
DWl: Já que neste livro você propõe “continuar a conversa” do anterior, Na Minha Pele, eu gostaria de retomar a partir dele. Você publicou Na Minha Pele em 2017, um livro íntimo e pessoal no qual você tratou de racismo, empoderamento, solidão da mulher negra, mortalidade jovem negra, vitimismo… Em sua visão, o que mudou no Brasil de lá para cá, no contexto desses temas?
Lázaro Ramos: Acho que a gente tem algumas coisas a celebrar: uma presença no audiovisual que inegavelmente melhorou, apesar de a gente ter dificuldade de dar continuidade; tem uma presença de pessoas no meio universitário, que trouxe outros pontos de vista; a gente tem uma presença estética mais variada nos trabalhos do jornalismo; a gente tem uma imprensa negra que está ocupando mais espaço… Isso são coisas importantes de celebrar. Por outro lado, a gente tem uma retração, nas empresas, do debate racial e dos grupos de diversidade. A gente tem uma reação a alguns avanços e alguns posicionamentos de pessoas pretas, pessoas que dizem “se querem debater isso, vão para outro lugar”. O que traz uma exigência de que a gente renove nossas estratégias. Por isso que é “continuando a conversa”. Eu entendo que o primeiro livro é reflexo de algumas décadas de aprendizado. Mas a gente precisa continuar a conversa sobre isso, tendo a coragem de não ser estanque, de não estar resolvido. De que não há fórmula fácil ou de que a gente não tem mais o que debater.
Este livro é muito moldado para o hoje. Eu não sei se os meus livros vão envelhecer bem, mas eu sei que eles são tentativas de contribuir para o hoje, para a gente diagnosticar coisas hoje e pensar alternativas para melhorar o hoje. Eu não quero nem melhorar o amanhã. Eu quero melhorar o hoje.
Por que “continuar a conversa” é importante, especialmente no momento em que o mundo vive o segundo governo de Donald Trump e que países como a Alemanha, por exemplo, veem um recrudescimento da ultradireita, concretizada na expressiva votação do partido AfD no Parlamento no final de fevereiro?
Essa é uma conversa que não é única. Acho que algumas pessoas não querem conversar, estrategicamente. A tentativa, na verdade, é silenciar. Não é que [elas] não sabem conversar. A verdade é que não conversar facilitar você ser autoritário, facilita você parecer que tem uma resposta fácil para um problema complexo. Então, tem esse setor aí que não quer conversar estrategicamente. Conversar significa desconversar com as pessoas que estão no mesmo espectro, para a gente ter coragem de avaliar a trajetória, ver o que precisa se reinventar, se renovar.
Essas conversas são fundamentais. E tem pessoas que não estão em extremo nenhum e que estão tentando encontrar, com suas novas fórmulas para o bem-viver… Essas sim é que [proporcionam] uma conversa interessantíssima. Eu acho que elas são o foco de esperança para a gente não viver um futuro bruto, um futuro que mata, um futuro que silencia, que não tenha a capacidade de mediar diferenças para um projeto coletivo. A minha fé está nesse lugar.
Tendo a consciência de que a não conversa é estratégica, é estratégica por parte de pessoas que estão na liderança. A gente não pode ser tolo com relação a isso. Mas a minha função aqui é essa. Eu sou uma pessoa que tem sonhos, metas e utopias: tentar fazer com que a gente se medie para fazer um projeto coletivo. Porque esse que está aí não está legal não.
Na última semana, a repercussão dos ataques a um jogador do Palmeiras ilustrou a persistência do racismo neste esporte, considerado paixão nacional. Que dificuldades você vê na sociedade para lidar com essa questão?
Porque para a gente enfrentar o racismo a gente vai ter de repensar poder, pensar na mão de quem está na gestão das coisas. A gente vai ter de repensar a economia, a distribuição de renda. A gente vai ter de repensar os saberes que estão no mundo para gerir seja lá o que for. A gente vai ter de pensar no desequilíbrio que se tem. E isso mexe com as certezas que as pessoas têm, e com os lugares que as pessoas acham que têm de direito. Combater essa conversa é muito estratégico. Porque você faz as pessoas ficarem com medo, se apequenarem, se silenciarem.
As pessoas estão tendo coragem de, na internet, sendo filmadas, praticarem atos de racismo. As pessoas estão tendo coragem de defender atitudes racistas. Mexe com a estrutura, eu sempre soube disso. Eu sempre soube disso. É preciso muita coragem, generosidade e sabedoria para conseguir enfrentar de verdade as nossas chagas. ,
Parece que o país tem de funcionar de determinada maneira. E mexer com o dinheiro, o poder e com aquilo que a gente acha que é quem detém o saber, isso aí, meu velho, é mexer com a cultura que está arraigada com a gente há muito tempo, há muito tempo.
Felizmente fazemos parte de uma geração que veio para dizer assim “peraí, gente, eu também vi, eu quero falar isso aqui, presta atenção, tem outros caminhos, tem outros lugares”. A gente está lidando com uma falência de gerar o mundo.
Eu aqui do meu lado fico tentando, através da utopia, dos sonhos, da arte, dos exemplos, das alternativas, da sensibilização, fazer um pouco minha parte. Este meu livro, inclusive, não é um livro para conscientizar. É um livro para sensibilizar este debate que está aí. Estou tentando fazer a minha parte oferecendo este livro utópico.
Na Nossa Pele é descrito como um livro em que você mostra “que sua pele é coletiva, forjada em experiências e aprendizados comuns”. Pode dar um exemplo concreto desses aprendizados? Que lições você quis deixar registradas com o livro?
Olha como são as coisas. O Na Minha Pele chama “minha pele” e um monte de gente lia e falava “nossa, parece que sou eu”. E eu falava: “O que está acontecendo, esta história é minha, vocês estão querendo roubar a minha história”. Este livro tem experiências que facilmente são compartilhadas. É uma maneira de olhar para a minha mãe e ser um pouco mais justo com ela.
É um livro que traz também como identificação a questão sobre a emancipação. E falar sobre as prisões que a gente vive.
Isso aí é um tema que toca as outras pessoas.
No capítulo Emancipação, você conta como, em suas próprias palavras, “agora ator famoso” deu “uma rasteira na história”. É comovente a compra do apartamento onde sua mãe trabalhava, revisitar o lugar sob outra perspectiva e, por fim, transformá-lo em centro de auxílio para os resgatados em trabalho análogo à escravidão. Como dar “rasteiras na história”?
É por isso que a gente tem de pensar em política pública. Este é um livro em que falamos sobre arte, dos mecanismos da arte de salvação. Mas tem coisas de que a arte não dará conta. Tem coisas que estão no plano da política pública, da justiça, do Judiciário. Não dá para ler este livro tão utópico e falar que magicamente as pessoas vão dar rasteira na vida. Não vão dar.
Tem pessoas que não vão conseguir deixar herança e legado nenhum para as próximas gerações, seus filhos. É por isso que a gente fala tanto em justiça social, em mobilização social. É por isso que a gente fala tanto em pautas de políticas que pensem em fazerem as pessoas progredirem tendo prazer na vida. É por isso que a gente fala em carga horária de trabalho, para as pessoas terem ócios. É por isso que a gente fala sobre acesso à cultura, educação. Está neste plano. Não vai acontecer magicamente.
A maioria da pessoas que passarem pela Terra e pela vida vai ter uma vida muito difícil. Se a gente não fizer um esforço social e político as coisas não vão mudar. Este livro é um toque de esperança, de fé, de estratégia. Mas, ao mesmo tempo tendo muita consciência de que a arte, a literatura, a cultura não vão dar conta de tudo. Tem coisas que são do campo da Justiça e da política pública. E da consciência social. E de quem tem a oportunidade de fazer um bem para a sociedade.
Gostaria que você revisitasse sua experiência escolar e nos dissesse: O que você gostaria que tivesse sido diferente para a sua formação cidadã dentro de um país estruturalmente racista? E o que foi fundamental na sua formação escolar nesse contexto, de um país estruturalmente racista?
Nossa… Eu não sei se eu seria outra pessoa. Porque deixa eu dizer uma coisa muito legal que meu pai fez? Eu não tive um [videogame] Atari. Mas eu tive a [enciclopédia] Barsa. […] Eu tive um ensino de qualidade, eu tinha profissionais da educação apaixonados por ensinar. E sou fruto disso. Dessa educação. Então as faltas que eu tive acabaram moldando o meu caráter.
A minha história é de exceção. Eu tive exceção por encontrar a professora Idalina, a professora que não deixou eu abandonar a escola para trabalhar e ajudar a minha mãe. Eu encontrei a voz da professora Idalina: ela me enxergou e disse: “Permaneça, porque você tem um caminho”. Eu tive o professor Alberto, que era de teatro e me ensinou, me deu aula… Essas pessoas fizeram a diferença. Eu não sei o que acrescentaria, porque eu tive pessoas assim. Eu fui muito beneficiado por pessoas que me ofereceram seu tempo e palavras de incentivo e direcionamento. Coisas que muita gente não tem porque não é vista.
Qual é o papel da arte, sobretudo dos artistas negros, na formação e fabulação do Brasil?
Na maneira de a gente ter um retrato mais justo do que nós somos.
Eu me lembro de tanta coisa que fez um retrato mais justo do que nós somos num lugar de reconhecimento e fortalecimento de autoestima e justiça. […] A gente está com um monte de gente fazendo coisas muito legais.
Dona Diva Guimarães faleceu no ano passado, aos 84 anos. Uma edição da coluna da DW Negros Trópicos prestou uma homenagem à professora que, em 2017, falou durante a mesa “A pele que habito” da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), num discurso em que nossa autora diz que dona Diva “explicou o Brasil”. Em conversa no seu programa Espelho, dona Diva disse que queria falar com você na Flip para dizer como estava feliz “por ter uma pessoa que me representa, uma pessoa que representa os negros”, num país que “é vendido lá fora como um país que não tem racismo”.
Como escritor, apresentador, diretor de teatro, cinema, autor de livros infantis, ator, como enxerga o impacto – e o legado – do seu trabalho e também do seu engajamento, tanto Brasil quanto para gerações mais jovens como as de seus filhos?
Eu me sinto muito feliz. Era o que eu queria da minha vida. Eu acho que estou no lugar que eu estou, que eu mereço. Essa é a minha função mesmo. Acho que meus ancestrais estnao felizes. Mas eu não quero representar ninguém. Eu quero companhia. […] É muito bacana estar aqui, eu fico feliz de ser inspiração, de ser exemplo. Mas bacana mesmo é ter companhia, ter mais gente com oportunidade, com o talento reconhecido, com a sua voz também. Eu não quero ser dono de pauta nenhuma, não quero falar sozinho. Tenho muita coisa para aprender também e é libertador falar isso porque, de fato, é. Este é um pouco o desejo de agora. […] Mas é isto que a gente merece. E eu quero isso para mais gente.