Podemos pisar em um solo alheios à riqueza e à história que ele carrega. Uma pedra pode ser só uma pedra, um morro, apenas um morro. Cabe ao espírito humano investigar e revestir o que nos cerca com conhecimento, enaltecendo seu valor e necessidade de preservação. Com essa perspectiva, uma iniciativa da Unesco, chamada Geoparques Globais, vem reconhecendo áreas com patrimônio geológico de importância internacional.

O objetivo é explorar os vínculos da geologia com aspectos culturais locais, envolvendo as comunidades e promovendo o desenvolvimento econômico e a gestão sustentável das regiões.

O Brasil possui cinco territórios com a certificação: Seridó, no Rio Grande do Norte, desde 2022; Caminhos dos Cânions do Sul, que estende-se por Santa Catarina e Rio Grande do Sul, desde 2022; Araripe, no Ceará, desde 2006; e os mais novos geoparques da Quarta Colônia e Caçapava do Sul, ambos no Rio Grande do Sul e incorporados à lista neste ano.

Essas regiões possuem atrativos geológicos e naturais exuberantes: fósseis de dinossauros que figuram entre os mais antigos do mundo, pterossauros com um estado único de conservação, o maior dinossauro pescoçudo do mundo, uma floresta de pinheiros petrificada do período Jurássico, dezenas de espécies de libélulas do período Neo Carbonífero fossilizadas, paleotocas feitas por preguiças gigantes, megafauna pleistocênica, registros rupestres de povos antigos, rocha vulcânica, derrame basáltico, rochas pré cambrianas e sedimentares, morros, picos, vales, cachoeiras, cânions, grutas, matas, rios, abundância de fauna e flora.

Além disso, têm vivas manifestações culturais interagindo com esses espaços: templos e monumentos religiosos, danças, festivais, lendas, folclore, peregrinações, música e encontros de etnias e diversas expressões gastronômicas.

“É uma nova forma de gestão territorial que tem no patrimônio geológico o ponta pé inicial para o desenvolvimento das regiões, seguindo a linha da sustentabilidade,” diz Marcos Antonio Leite do Nascimento, coordenador científico do Seridó Geoparque Global da Unesco.

“Muita gente pensa que o geoparque é um espaço como um parque, em que se paga um ingresso e se entra em um local delimitado. Mas não é nada disso. É diferente de áreas de proteção ambiental, por exemplo, onde as pessoas não são pensadas. No fim, o que importa para o geoparque é o desenvolvimento das pessoas” afirma Michele Vestena, geógrafa e vice-diretora do geoparque Quarta Colônia.

Acesso ao conhecimento, divulgação da ciência e conscientização

A educação é um dos pilares da proposta dos geoparques. O que todas as gestões têm em comum é o protagonismo de universidades para levar adiante projetos educativos, como palestras, cursos e oficinas voltadas a estudantes de nível escolar e à comunidade em geral. Pesquisas científicas nos diversos geossítios que cada território abarca também são conduzidas pelas principais instituições de ensino superior de cada região.

Uma ação realizada por todos os geoparques é a elaboração de materiais paradidáticos, como livros infantis e cartilhas, que contam com o suporte de geólogos e especialistas e são distribuídos à população ou vendidos às prefeituras. Esses materiais adaptam a linguagem acadêmica, tornando-a mais acessível.

O Paleodia, realizado anualmente pelo geoparque Quarta Colônia, é um exemplo de iniciativa voltada ao público jovem organizada junto ao Centro de Apoio à Pesquisa Paleontológica da cidade de São João do Polêsine (RS). “A data é uma oportunidade para conhecer a amostra fossilífera e participar de atividades como teatro, jogos, palestras,” aponta a vice-diretora Michele Vestena. Em 2022, o Paleodia teve um público de cerca de três mil pessoas, em um município de cerca de 2.500 habitantes, atraindo a população de municípios vizinhos.

O geoparque Araripe, no Ceará, é o geoparque pioneiro no Brasil e já ofertou mais de 1.500 bolsas de ensino, pesquisa e extensão envolvendo os patrimônios do território. “O museu de Paleontologia fica em uma cidade pobre de IDH baixo, Santa do Cariri. No museu você é guiado por crianças de 11 a 14 . Isso transforma vidas, 100% desses monitores chegam à universidade” aponta o seu diretor executivo, Eduardo da Silva Guimarães.

Lá, eles lançaram a iniciativa “Lugar de fóssil é no museu”, incentivando pessoas a entregarem fósseis para o patrimônio público. “A quantidade de fósseis aqui é tão grande que muitas pessoas têm fósseis em suas casas, muitas vezes eles estão lá há gerações, sobre uma mesa, servindo como encosto de porta”, explica Guimarães. “Muitas crianças fizeram campanha e foram devolver. Isso é orgulho de pertencimento, a sensação de contribuição ao seu patrimônio.”

Geoturismo e a interiorização do turismo

A aposta das regiões que submeteram candidaturas a Geoparque Global Unesco é de que o título sirva de alavanca para o turismo. No Brasil, o ecoturismo foi responsável por uma em cada quatro viagens a lazer realizadas em 2021.

Ainda que dentro dos seus territórios muitos geoparques tenham turismo de aventura, trilhas e passeios que se encaixam no ecoturismo, o geoturismo ocorre quando a busca por conhecimento e a apreciação de aspectos geológicos motivam a viagem. “O geoturismo não fica só na contemplação de uma cachoeira, de uma serra, você explica como, quando e por que aquilo se formou”, ressalta o coordenador do geoparque Seridó.

Com os litorais sendo os destinos preferidos dos brasileiros, os geoparques promovem a interiorização do turismo, e podem tornar as regiões economicamente mais dinâmicas. O Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens no geoparque de Araripe recebe cerca de 48 mil visitantes por ano. “Nós temos fósseis em quantidade e qualidade, inclusive com preservação de tecidos moles. Isso faz com que a região do Cariri tenha mais leitos de hotel do que Fortaleza, que é a capital e banhada pelo mar.”

O geoparque Seridó já colhe os frutos do título da Unesco, contabilizando cerca de 10 mil pessoas que visitaram o território em 2022 com a motivação de conhecer seus geossítios. “Fizemos um mapeamento quatro meses antes da chancela e seis meses depois da chancela. Houve um acréscimo gigante. Os números de hotéis, pousadas, restaurantes e bares aumentaram consideravlemente pela nova demanda. Um município aqui na região tinha apenas duas pousadas dez anos atrás, hoje são 14 pousadas, das quais, seis foram criadas por causa do geoparque”, relata Leite.

Já no caso do geoparque da Quarta Colônia, chancelado em junho, ainda não é possível mensurar o impacto do selo no turismo “Vamos distribuir um formulário entre nossos parceiros e guias turísticos, para começar a contabilizar os visitantes e identificar quem vem pelo geoturismo.”

Infraestrutura e gestão

A administração dos geoparques é feita por consórcios de municípios, por secretarias municipais de Cultura e por universidades. Cada geoparque é formado por dezenas de geossítios, que, em alguns casos, também podem ser parques estaduais, Áreas de Preservação Permanente, reservas ou espaços culturais regulados por outras instituições. As leis de conservação seguem diretrizes nacionais vigentes e não se alteram com o título da Unesco. Alguns geossítios são de acesso totalmente livre, alguns têm entrada e circulação supervisionadas, alguns só podem ser visitados sob agendamento, e há ainda os reservados à pesquisa.

A infraestrutura é o grande desafio para que o potencial das localidades seja melhor aproveitado. Muitos geossítios ainda carecem de qualquer sinalização que indique às pessoas onde elas se encontram e comunique sua dimensão geológica. O geoparque Araripe conseguiu junto à Secretaria de Turismo do Rio Grande do Norte uma verba de R$ 1,4 milhão para implementar neste ano placas em rodovias, painéis interpretativos nos geossítios e totens de identificação.

O geoparque Quarta Colônia tem 54 geossítios, dos quais 11 são fossilíferos e fechados à visitação. Hoje, o único local para apreciação dos fósseis é o Centro de Apoio à Pesquisa Paleontológica, mas o geoparque quer mudar essa situação.

“Temos planos para começar a fazer uma estrutura básica. Por mais que esses geossítios com fósseis estejam em um barranco, no meio de uma lavoura, numa propriedade privada, temos a preocupação que esses locais estejam cada vez mais abertos à visitação”, diz Vestena.

Os recursos para manutenção e projetos dos geoparques vêm de diversas instâncias, como prefeituras, governos estaduais, verba das universidades federais e parcerias com entidades como Sebrae e Senac. Também existem parcerias variadas com o setor privado. Um exemplo é a construção de um hotel em Juazeiro do Norte, no geoparque do Araripe. O empreendimento instalou um minimuseu do geoparque aberto ao público dentro do seu espaço.

“Um grande desafio para nós é que os nove municípios se enxerguem como geoparque. O selo da Unesco significa um diferencial na hora de buscar recursos, traz credibilidade”, indica Vestena. Para quem está à frente dos geoparques, a vantagem do modelo é ser uma estratégia a longo prazo, que independe dos governantes do momento. “Entra prefeito, sai prefeito, e fica um plano de desenvolvimento sustentável”, ressalta Leite.

Caminhos para empreender e novas fontes de renda

Na sua estratégia, o geoparque da Quarta Colônia estabeleceu uma rede que conta com mais de cem parceiros e amigos do geoparque, incluindo donos de restaurantes, pousadas e empreendedores, entre outros, com o intuito de formar um ecossistema de divulgação e conscientização sobre o geoparque que gere turismo e renda.

Muitos integram a rede produzindo itens para venda que carregam uma identidade do território. “Incentivamos e educamos para que quem produz artesanato utilize os símbolos do geoparque. Uma toalha de prato, por exemplo, que ela seja feita ilustrando um patrimônio daqui, e não uma coisa aleatória. Passamos a ter pessoas que confeccionam amigurumis de dinossauros encontrados na região.”

A formação de guias turísticos aptos a falar das propriedades dos geossítios é fundamental para atrair visitantes e também para abrir novas possibilidades de renda à população. No Seridó, o geoparque desenvolveu em parceria com o Senac um curso que já capacitou quase 120 guias de turismo no estado do Rio Grande do Norte. “Muitas dessas pessoas têm o geoturismo como sua atividade principal”, aponta o coordenador.

O geoparque da Quarta Colônia arrecadou recursos por meio do Ministério da Cidadania para qualificar 2,5 mil pessoas nas áreas de turismo, paleontologia, gestão de empresas, divulgação de materiais, entre outros, através da UFSM em um período de dois anos. Pessoas em situação de vulnerabilidade social registradas no cadastro único são o foco da iniciativa.

No Araripe, o papel do geoparque tem sido de auxiliar a comunidade a gerar renda a partir das suas expertises locais, como artesanato e culinária. “Queremos potencializar o que as pessoas já sabem fazer. Que elas pensem, como posso empreender isso? Será que posso criar uma MEI? Será que posso criar uma associação? Quais são os locais de comercialização?,” relata o diretor-executivo.

Uma das ações de economia criativa e turismo comunitário realizadas pelo geoparque foi instruir moradores que desejavam transformar suas casas em pequenas pousadas e estalagens. “O turista, principalmente estrangiero, não quer ficar só em um resort, o toque da cultura local é muito valorizado,” aponta Guimarães.

O programa Geoparques Globais da Unesco foi oficializado em 2015, mas alguns territórios já faziam parte da rede antes da oficialização. Ao todo existem 195 geoparques no mundo. Na América Latina, oito, dos quais cinco no Brasil. Na Europa 94, dos quais dez na Alemanha. A China detém o recorde global, com 41 Geoparques Unesco.

Dezenas de outros territórios no Brasil possuem projetos de geoparque e trabalham para tornar-se Geoparque Aspirante, o último passo antes de serem reconhecidos. Os territórios são reavaliados a cada quatro anos, e podem receber advertências amarelas e vermelhas e até perderem o título, caso deixem de cumprir com os critérios da instituição.