Durante séculos as montanhas e os campos de gelo separaram a região de Aysén, no sul do Chile, do resto do país. O isolamento preservou a natureza e a cultura singular das estâncias, hoje ameaçadas pela lógica dos megaprojetos hidrelétricos.

 

Patagônia chilena é sinônimo de Parque Nacional Torres del Paine, pensa a maioria dos turistas brasileiros. Quando muito, alguém lembra da longínqua Punta Arenas, o porto no Estreito de Magalhães, base para expedições à Antártida. Mas a porção chilena da Patagônia chega quase à latitude de Puerto Montt e da argentina Bariloche. Dentro dessa área vasta e fria e bastante intacta há um território tão belo quanto desconhecido: Aysén, a 11ª das 15 regiões do Chile. 

O isolamento de Aysén foi determinado pela natureza: ao norte, o relevo acidentado dificulta o acesso à 10ª Região, onde está Puerto Montt. No outro lado, o Campo de Gelo Sul, o segundo maior do mundo fora da zona polar (com 16.800 km2), cobre a divisa com a 12ª Região, onde ficam Punta Arenas e Torres del Paine. Com isso, os chilenos que querem ir por terra da capital, Santiago, a Aysén precisam entrar e sair da Argentina e cruzar os Andes – não é uma rota fácil.

O primeiro europeu a avistar essa região foi Fernão de Magalhães, em 1520, mas ele e a maioria dos que o seguiram se limitaram a navegar pela costa chuvosa. Durante séculos, a região foi habitada por tribos indígenas, cujo contato com os brancos resultou em doenças, alcoolismo e escravidão. Só no fim do século XIX chegaram os primeiros colonizadores de fato, espanhóis vindos do arquipélago de Chiloé, ao norte, para trabalhar nas estâncias arrendadas pelo governo chileno a companhias de pecuária e fazendeiros estrangeiros.

A distância dos centros consumidores e as dificuldades de explorar economicamente o território desestimularam os empresários. A maioria deixou a região, mas os imigrantes ficaram e ao governo restou apoiar a propriedade agropecuária. A cultura das fazendas patagônicas predomina até hoje, com baixo impacto ambiental, mas nem sempre foi assim: entre 1930 e 1950, o governo estimulou uma destrambelhada estratégia de queimar os bosques nativos para abrir espaço para a pecuária. A erosão e os deslizamentos de terra derivados são visíveis ainda hoje em certas áreas.

Vazio humano
Aysén é a região menos povoada do Chile, com 105 mil pessoas em 109 mil km2 – menos de um habitante por quilômetro quadrado. É possível percorrer dezenas de quilômetros de florestas, campos e rios azuis sem ver uma única  pessoa. A capital, Coyhaique, tem 50 mil moradores, um sexto da população de Palmas (TO), a menor capital brasileira.

A baixa densidade demográfica dificulta o desenvolvimento, mas projeta o ecoturismo. Por esse ângulo, Aysén é um santuário de parques nacionais, reservas e monumentos ecológicos. Quem gosta de esportes rústicos, como caminhadas (inclusive por geleiras), cavalgadas e ciclismo, encontra aqui o paraíso.

Hidrelétricas x fazendas
Há, porém, uma ameaça. A região metropolitana de Santiago e a indústria de mineração do norte do Chile precisam cada vez mais de energia, e os rios ayseninos podem suprir essa demanda. Lastreadas numa legislação frágil herdada do governo do general Augusto Pinochet, que autoriza a privatização de bens comuns, como a água dos rios, as empresas de geração e distribuição de eletricidade planejam megaempreendimentos na região. A Patagônia está para o Chile como a Amazônia para o Brasil, em termos de recursos naturais. Criada em 2006, a HidroAysén, parceria da ítalo-espanhola Endesa Chile com a chilena Colbún, pretende erguer cinco hidrelétricas nos rios, as empresas de geração e distribuição de eletricidade planejam megaempreendimentos na região. A Patagônia está para o Chile como a Amazônia para o Brasil, em termos de recursos naturais.

Criada em 2006, a HidroAysén, parceria da ítalo-espanhola Endesa Chile com a chilena Colbún, pretende erguer cinco hidrelétricas nos rios Baker e Pascua, com potência instalada de 2.750 megawatts. A anglosuíça Glencore Xstrata e a australiana Origin Energy uniram-se na Energía Austral, cujas três usinas projetadas nos rios Cuervo e Blanco deverão ter capacidade total de 1.000 megawatts. Para ligar as hidrelétricas à rede de transmissão de energia chilena prevê-se a construção de linhas de alta tensão com 2,3 mil quilômetros de Aysen comprimento. Haverá impactos ambientais.

A maioria do empresariado e o governo chileno apoiam vigorosamente os projetos. O atual presidente, Sebastián Piñera (cujo mandato termina em janeiro de 2014), já os defendeu quando a Comissão de Avaliação Ambiental de Aysén aprovou as represas nos rios Baker e Pascua, em 2011: “Temos de dobrar nossa capacidade energética em dez anos, se quisermos continuar a crescer em um ritmo de 6%”. 

Os ambientalistas, é claro, estão contra, assim como boa parte dos intelectuais e, segundo pesquisas de opinião, 60% da opinião pública chilena. Para os opositores, os projetos fariam Aysén perder seu excepcional status ambiental e turístico para atender às necessidades das mineradoras. Um estudo divulgado em 2009 pela Universidade do Chile, Se necesitan represas en la Patagonia? Un análisis del futuro energético chileno, afi rma que as hidrelétricas não são necessárias para a demanda prevista e que sua construção inibiria investimentos em outras fontes sustentáveis de energia (provavelmente mais caras).

Os consórcios se defendem argumentando que a hidreletricidade é uma energia renovável, que os projetos desenhados respeitam princípios sustentáveis e que os benefícios econômicos para a região e o país são evidentes. Batalhas judiciais já atrasaram o início das obras, mas por enquanto os consórcios levam vantagem nos tribunais. O grande empecilho enfrentado pelas empresas são as ainda pendentes licenças ambientais para as linhas de transmissão, assim como se verifi ca no Brasil. 

Os opositores torcem para que a eleição presidencial seja vencida por um político com uma visão oposta à de Piñera. A favorita, a socialista Michelle Bachelet (presidente de 2006 a 2010), é a principal esperança. “Não sou a favor de HidroAysén. Não acho o projeto viável. Penso que não deveria ir adiante”, afi rmou a candidata num debate político em 23 de junho passado. Se ganhar o segundo turno da eleição, em dezembro, e voltar ao poder, Bachelet poderá dar um presentão à natureza de Aysén.