Na manhã de 29 de junho, um domingo, as pistas da Avenida Paulista, em São Paulo, foram tomadas por um movimento diferente. Para inaugurar a ciclovia de 2,7 km ali construída, o trânsito foi fechado aos automóveis e aberto às pessoas. Em vez dos carros que costumam entupir as faixas nos dias de semana, circularam apenas rodas não motorizadas: bicicletas, patins, patinetes e até cadeiras de rodas. O que se viu ali, numa das principais artérias da maior metrópole da América do Sul, foi uma conquista emblemática de um movimento que vem ganhando força no Brasil e no mundo.

Ao que tudo indica, uma verdadeira revolução urbana vem em duas rodas e a toda velocidade. Cada vez mais, aumenta o número de pessoas que adotam a bicicleta como meio de transporte não apenas para fugir do trânsito, mas em busca de uma vida mais saudável e de maior comunhão com a comunidade e o espaço urbano. Com a pressão das pessoas, ou por iniciativa de administrações ousadas, cidades como São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, Buenos Aires (Argentina), Bogotá e Medellín (Colômbia), entre outras, têm investido em políticas de incentivo às bicicletas em detrimento dos carros.


À esquerda, a recém-inaugurada ciclovia da Avenida Paulista, em São Paulo; à direita, a ciclovia da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro

Desde os anos 1960, predomina a vertente de planejamento urbano que privilegia o uso do espaço das cidades para o trânsito de carros. Essa visão “carrocêntrica” é combatida desde seu surgimento e teve em cidades como Amsterdã (Holanda) e Copenhague (Dinamarca) sua melhor antítese. Mas somente agora, com o acúmulo de evidências dos danos ambientais causados pela emissão de gases dos automóveis, a insatisfação crônica com a (i)mobilidade urbana e uma demanda reprimida por maior qualidade de vida, essa lógica parece enfim estar sendo invertida.

Em São Paulo e Brasília, as cidades brasileiras que mais ampliaram a estrutura para bicicletas nos últimos dois anos, a vida dos ciclistas ainda é complicada. Há muito a ser aprimorado, mas, lentamente, percebe-se uma mudança de cultura. Nas páginas desta reportagem, PLANETA conta a história de pessoas e de cidades que estão melhorando suas vidas com o uso das bikes.

Vontade política

A cidade de Cabedelo está ligada à capital da Paraíba, João Pessoa, por 13 quilômetros bem degradados de ciclovia, que correm paralelos à rodovia. Como se planeja duplicar a estrada, não há previsão de reformas para a área de trânsito das bicicletas. Enquanto esse impasse permanece, a secretária executiva de mobilidade urbana de Cabedelo, Patrícia Cunha, que faz o trajeto todos os dias para trabalhar, conseguiu dar um pequeno grande passo – ou, melhor dizendo, uma bela pedalada. Ela instalou placas lembrando os motoristas da presença dos ciclistas ao longo do caminho.

Pode parecer pouco, mas essa era uma velha reivindicação dos cicloativistas, grupo do qual Patrícia fazia parte até ser convidada pelo prefeito para integrar a sua gestão, há cerca de um ano e meio. “Pedimos por anos que fossem colocadas placas na rodovia. E acho que não teria sido posto se um cicloativista não estivesse dentro da máquina pública”, diz. “Vi nesse convite a oportunidade de fazer políticas públicas, de buscar o bem-estar dos ciclistas de dentro da máquina pública.


No alto, bicicletário em Curitiba; acima, ciclovia aberta na zona leste de São Paulo

Antes estava sempre à margem, gritando e correndo atrás do Ministério Público e de audiências com os gestores”. De militante, Patrícia passou a gestora. Mesmo com orçamento restrito, ela descobriu que é possível fazer campanhas educativas e reforçar a sinalização. “Os custos disso não são tão altos para a máquina pública, só depende de vontade política. A única coisa que demora é processo de licitação. No mais, não tenho sentido dificuldades de atuar na gestão pública.”

Para Patrícia, a bicicleta é a rea­lidade de países inteligentes, que pensam a mobilidade do ponto de vista humano, e não do carro. “No Brasil, faltam pessoas para fazer isso. Os gestores, geralmente, são usuários de carro. Mas é preciso haver uma pessoa que saiba o que é usar uma bicicleta para se deslocar. A teoria não se compara à vivência”, acredita.

Mudança de hábito

O convívio entre veículos motorizados e as “magrelas” é difícil, mas, com o tempo, vai amadurecendo. Quando o gaúcho Vinícius Mariano trabalhava no Ministério Público Federal, a dois quilômetros da sua casa, ainda não havia ciclovias pela cidade de São Paulo e ele costumava levar muitas fechadas, sobretudo de taxistas.

Há cerca de um ano, ele deixou o funcionalismo público e se tornou professor de ioga. Circulando sobre duas rodas entre os locais de suas aulas todos os dias, sente que o espaço reservado às bicicletas é bastante respeitado pelas motos e carros, mas costuma ser invadido pelos pedestres e catadores. “Eu entendo, o espaço público é tão pouco para as pessoas na cidade, não me importo em dividi-lo. As ciclovias fazem toda a diferença, pedalar de forma segura é outra experiência.”

A psicóloga Fernanda Vilella sempre pedalou muito: é triatleta amadora, está acostumada a altas velocidades e longas distâncias, e também gosta de usar a bike para o lazer. “Gosto do ritmo da bicicleta, do vento no rosto, de mexer o corpo e sentir que ele está vivo, de ver a cidade em outra velocidade. No carro, você acaba perdendo muitas cenas e lugares que passam durante o seu percurso”, diz.

Fernanda, no entanto, tinha medo de pedalar pelas ruas de São Paulo. Mas isso tem mudado com a implementação da estrutura cicloviária na cidade, que, entre 2013 e 2015, saltou de 60 km para 307 km. Atualmente, a psicóloga tem usado mais sua bicicleta no dia a dia, para trabalhar ou passear nos fins de semana.

Tornar os trajetos de bicicleta mais seguros é o principal fator para atrair mais usuários para o modal, como mostram as experiências de Buenos Aires e Copenhague (veja mais a respeito das bicicletas nessas capitais nos quadros às págs. 31 e 32, respectivamente). E é também o principal desafio para as cidades que estão dando as primeiras pedaladas.

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El camino de Buenos Aires

A Argentina é o único representante latino-americano no ranking mundial dos 20 países mais amigáveis com a bicicleta, realizado anualmente pela Copenhagenize, consultoria internacional de design urbano. O mérito pode ser atribuído à visão abrangente da iniciativa do poder público, implementada pelo secretário de Transportes Guillermo Dietrich, ex-triatleta e entusiasta da bicicleta.


O número local de ciclistas subiu oito vezes desde 2010

Iniciada em 2009, a rede de ciclovias “protegidas” se estende por 140 km. Um dos diferenciais do projeto é a preocupação em manter, na maior parte das vias, uma separação física entre o espaço das bicis e a área dos automóveis. Graças a isso, até hoje não se registrou nenhuma fatalidade. É o que leva mais pessoas a adotar esse meio de transporte. A cobertura da rede é outro ponto a favor: além das ruas principais que cortam o centro da cidade, a ciclovia se ramifica pelos bairros e interliga áreas comerciais, centros estudantis e terminais de outras modalidades de transporte público.

O empréstimo pode ser feito em 200 postos automatizados, que funcionam 24 horas, todos os dias do ano – a oferta é de 3 mil bikes, 253% a mais que no início. Uma política de estímulo ao uso das bicicletas foi promovida, assim como uma campanha de conscientização e educação no trânsito. Nos últimos cinco anos, multiplicou-se por oito o número de pessoas que utilizam a bicicleta pela cidade. A proporção de deslocamentos feitos em bicis passou de 0,4% para 3,5%. Outro efeito foi o aumento no número de empreendimentos e no volume de negócios nas ruas por onde as ciclovias passam.

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Copenhague: em duas rodas se vive melhor

Os cidadãos de Copenhague têm pouco do que se queixar e muito do que se orgulhar. A cidade onde 93% da população está satisfeita com o lugar onde vive é também a mais amigável para os ciclistas, de acordo com o ranking organizado pela consultoria de design urbano Copenhagenize. Depois de perder o primeiro lugar para Amsterdã (Holanda) por dois anos seguidos, a capital dinamarquesa colhe os frutos do investimento contínuo em políticas de incentivo à bicicleta.

A estratégia faz parte de um projeto ambicioso de tornar Copenhague a primeira cidade neutra em emissões de carbono no mundo. “Os três pilares para esse plano dar certo são o consumo e a produção de energia e a mobilidade”, diz Jorgen Abildgaard, diretor executivo do projeto climático de Copenhague. O último relatório sobre o uso de bicicletas na cidade, com dados de 2013-2014, mostrou avanços significativos. De todas as viagens do dia a dia em Copenhague, 45% são feitas de bicicleta, um aumento de 25% ante os dois últimos anos.


A meta é fazer 50% da população da cidade andar de bicicleta

A principal explicação para o índice é que andar de bicicleta na capital é muito mais conveniente, graças às boas condições da estrutura cicloviária, que aumenta a segurança e a confiança no modo de transporte. A falta de segurança costuma ser o principal motivo que leva um morador de Copenhague a não pedalar. Graças à expansão do espaço para bicicletas, o aumento do número de vias e a separação das pistas dos carros, porém, 74% dos ciclistas dizem sentir-se seguros em duas rodas.

O número já está muito próximo da meta para 2025. A expectativa é que até lá 50% das pessoas utilizem a bicicleta como meio de transporte. Caso se atinja essa porcentagem, entre 10 mil e 20 mil toneladas de dióxido de carbono deixarão de ser lançados na atmosfera por ano.

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Europa de bicicleta

Quem viaja de bicicleta costuma relatar um tipo de experiência diferente. O contato direto com a atmosfera local, uma passagem mais demorada, o esforço em conquistar cada quilômetro rodado, tudo isso permite uma comunhão maior com o destino visitado. Mas pedalar em estradas costuma ser arriscado, já que as vias, em geral, foram pensadas para os carros. Na Europa é diferente.

Desde 1995, a European Cyclists Federation (Federação Europeia de Ciclistas) e a União Europeia investem no fortalecimento da rede de ciclovias transnacionais da EuroVelo. O sistema é dividido em 15 rotas, que passam por mais de 40 países e têm, atualmente, 45.000 km – a meta é chegar a 70.000 km até 2020.


Ciclista nas Dolomitas (Itália); com a EuroVelo, a Europa estará interligada por ciclovias

Houve uma preocupação em organizar historicamente os trajetos. A rota 3, por exemplo, refaz as trilhas dos romeiros europeus. Começa em Trondheim (onde na Idade Média viveu Santo Olavo), região que abriga o mais extenso fiorde da Noruega. Depois de descer pela Escandinávia, o caminho segue pela Alemanha, passando por cidades como Colônia, que abriga a impressionante catedral gótica construída entre 1248 e 1880 (a mais alta construção do mundo até 1890).

O ponto final é Santiago de Compostela, na Espanha, um dos lugares mais tradicionais de romaria. Para quem não tem disposição e tempo de percorrer as rotas completas (a maior delas tem 10.400 km), existe a opção de fazer algumas partes dos trechos de trem: os sistemas são integrados e a bike pode ir no vagão.