Os cenários de pedra de Rodellar oferecem uma culinária singular, brasões em fachadas do século 18 e aldeias desertas e semiabandonadas.

Em 1975, Alain Mazet e um grupo de amigos franceses descobriram um antigo povoado abandonado, escondido entre os cânions de Aragão, no nordeste da Espanha, aos pés da cordilheira dos Pirineus. Ao entrarem em uma escola, encontraram uma sala de aula com cadeiras arrumadas, o mapa da Europa fixado na parede e pedaços de giz à espera do professor. Parecia que os alunos podiam voltar a qualquer momento, mas não havia vivalma no horizonte. Graças a balidos de ovelhas, encontraram um dos únicos moradores do lugar, um pastor que os convidou para jantar. Foi assim que, num estábulo sem água encanada nem energia elétrica, com 50 centímetros de estrume no chão, descobriram estar numa aldeia de lendas, de bruxas e de estranhos fenômenos naturais, numa região inóspita e semisselvagem que, longe de amedrontar os forasteiros, acabaria por encantá-los.

Entre as muitas casas abandonadas encontradas em 1975, em Rodellar, Mazet escolheu e comprou uma, do século 17, toda feita de pedra. Hoje, o ex-contador de 75 anos viaja todo ano de Toulouse, onde mora, no sul da França, atravessando os Pirineus e a fronteira dos dois países, até as montanhas de Aragão. Tornou-se um apaixonado pela região e pela aura de mistério que intriga quem tem a sorte de chegar lá.

Rodellar é uma das muitas aldeias espanholas que, após a Segunda Guerra Mundial, foram abandonadas pelos moradores. O desenvolvimento econômico de cidades como Pamplona e Barcelona gerou o êxodo em povoados medievais, que viraram fazendas fantasmas. Vilarejos que durante séculos haviam produzido azeite, queijo e criado ovelhas acabaram esquecidos nos fundos dos vales.

“Um dos motivos do abandono, além da busca de emprego e de melhores condições de vida nas cidades, foi o sistema de herança que se praticava na região”, explica o francês, enquanto guia viajantes pelas trilhas que serpenteiam os cânions. “O filho mais velho da família herdava toda a propriedade e os irmãos e irmãs eram condenados a permanecer a serviço do novo dono, numa espécie de escravidão familiar.”

Com a morte do ditador Franco, em 1975, a democracia melhorou a situação no campo e a vida urbana do povoado começou a ressuscitar. Famílias retornaram, fazendas foram restabelecidas, bosques de oliveiras voltaram a produzir azeite e a região começou a ser descoberta pelo turismo. Mas até hoje a aldeia mantém o aspecto medieval do passado. As novas casas só podem ser construídas de pedras, preservando o estilo que confere fisionomia especial ao povoado. A pedra é uma onipresença, nas casas, nas pontes, na paisagem e na cultura.

Encravada na província de Huesca, Rodellar está cercada por um rico patrimônio natural, o Parque Natural da Serra e Cânions do Guará, com 50 mil hectares de penhascos, rios e florestas preservados. Da casa de Mazet até a entrada do Barranco de Mascún, uma das formações mais impressionantes, são 30 minutos de caminhada. O cenário causa espanto e respeito. Conta-se que no século 19, um explorador teria atravessado todo o complexo de paredões com um revólver na mão, tamanha a sensação de penetrar num mundo desconhecido.

Mazet, no entanto, parece flutuar enquanto escala uma trilha forrada de cascalhos. Com a experiência de quem já viajou ao Everest e desbravou toda a cadeia de montanhas dos Pirineus, o francês leva turistas ao Dólmen de Losa Mora, um monumento arqueológico escondido no alto dos labirintos de rocha – uma grande mesa de pedra.

As lendas dizem que o Dólmen seria um sepulcro pré-histórico, construído por um rei bruxo para abrigar os restos mortais da amada. Os blocos de pedra teriam sido amontoados por uma mora, um ser mítico que cobrava pedágio nas curvas da trilha, exigindo um tributo de pão e água dos pastores. Quem se negasse a pagar o imposto era abduzido para o interior da gruta e nunca mais saía.

 

Para os pesquisadores do Centro de Interpretação da Arte Rupestre, o órgão do Parque do Guará responsável por pesquisas arqueológicas, os dólmens são os cemitérios dos primeiros habitantes da área, os pré-históricos homens de Neandertal que habitaram a região entre 200 mil e 28 mil anos atrás e deixaram pinturas em vários sítios rupestres espalhados pelos cânions. Há vestígios préhistóricos por toda a parte. Com a redescoberta de Rodellar, várias pesquisas foram desenvolvidas na região. Só no campo da arte rupestre há mais de 60 sítios arqueológicos, formando um santuário classificado pela Unesco como Patrimônio Mundial.

Abaixo, cânions do Parque de Guará.

 

Alain Mazet, que foi uma das primeiras pessoas a visitar a gruta de Lascaux, na França, em 1940, a chamada “Capela Sistina da arte rupestre”, sabe do que está falando: “As pinturas de Rodellar são o testemunho preservado de um povo que viveu aqui há mais de 20 mil anos. É um legado valioso e que serve de reflexão para as novas gerações.” Para o francês, a necessidade de conservação do parque e do seu patrimônio é óbvia. Além de florestas de carvalho, fontes naturais, rios verdes correndo entre pedras, e uma fauna com veados, águias e javalis selvagens, a Serra do Guará está cercada de povoados medievais onde antigas ermidas, igrejas e castelos convivem com a chegada intermitente de aventureiros.

É o caso de Alquézar, um antigo vilarejo árabe dominado por um castelo, todo de cor ocre, a ponto de se confundir com as rochas que alicerçam a cultura da região. No conjunto histórico e artístico, predomina o estilo românico do início do século 11, ostensivo nas igrejas e nas fortificações. Al-Qasr em árabe significa fortaleza. O povoado militar foi erguido no fim do primeiro milênio e constitui um museu a céu aberto. Inúmeras pontes com arcos de pedra, intactas, dão uma pequena noção da dificuldade de se locomover por esses vales séculos atrás.

No centro, a aldeia árabe e o castelo de Alquézar, com a arquitetura românica do século 11, à direita, Alain Mazet e o dólmen mitológico de Losa Mora. Abaixo, uma das várias pontes de pedra da região.

 

Outra característica de Rodellar são os brasões encontrados nas portas e nas fachadas das casas, a maioria datando do século 18, quando ocorreu a última grande reforma urbana. Muitos são cópias de brasões e escudos medievais cujo significado se perdeu no tempo. “Essa região foi dominada por cristãos, conquistada por muçulmanos e reconquistada pelos católicos. Atravessou muitos períodos e culturas e o que vemos hoje é a sobreposição de várias tradições num cenário de rocha eterno”, explica Mazet.

A paisagem áspera, formada por paredões de centenas de metros de altura, grutas e rios subterrâneos, está transformando a paisagem dos vilarejos ao redor do parque. Se na década de 1970 só pastores guiavam rebanhos pelas trilhas, hoje há cada vez mais viajantes desembarcando a cada verão, para explorar as rotas que fazem do parque um dos mais interessantes pontos para a prática de trekking na Europa.

As lendas sobre as bruxas e os seres encantados estão sendo substituídas pelas histórias de aventureiros resgatados por helicópteros. Mas o clima de mistério continua inerente à paisagem. Com alguma disposição é possível conhecer lugarejos que guardam o silêncio de santuários, há séculos. Sentar em frente à capela da Ermida da Virgem del Castillo, construída no alto de um grande cânion, e imaginar a solidão voluntária dos antigos habitantes é uma experiência perturbadora. Gritos de águias ecoam no vale, as nuvens anunciam a chegada de chuva, mas as cidades de pedra desafiam a passagem do tempo.