30/03/2024 - 13:16
Livro “Eu devia estar na escola”, lançado neste mês, conta o que acontece durante um dia de operação policial, a partir da narrativa das crianças que moram no complexo de favelas do Rio.Desde 2014 à frente da editora Caixote, a jornalista e escritora carioca Isabel Malzoni mergulhou no universo das violências sofridas por crianças e adolescentes que moram no complexo de favelas da Maré meio por acaso. Em 2018, ela se abalou com a história da morte do adolescente Marcos Vinícius, alvejado quando saía da escola durante uma operação policial. No ano seguinte, um jornal publicou cartas e desenhos infantis relatando episódios de truculência e abusos.
“Fiquei impactada porque eram aqueles desenhos típicos de criança, pessoas de palitinhos, sol sorrindo, casinha quadradinha e, de repente, uma pessoa atirando, um helicóptero atirando”, conta Malzoni à DW. Em parceria com a pedagoga e escritora Ananda Luz, ela analisou essas cartas, e a dupla costurou uma narrativa polifônica, dando voz às crianças em um relato sobre o cotidiano de suas vidas na Maré.
Eu devia estar na escola – Por muitas crianças moradoras de favelas da Maré foi lançado neste mês. Na segunda-feira (25/03), houve um evento no complexo de favelas. E Marielle Franco, que era da Maré e foi assassinada em 2018, quando exercia o cargo de vereadora do Rio, foi lembrada. “Uma coisa que surgiu muito é que eles querem ter o direito a não serem interrompidos, e acho que isso é herança da Marielle. Eles entenderam, com a Marielle, o quanto a vida deles é interrompida de tantas formas”, diz Malzoni.
DW: O livro foi lançado na mesma semana em que três suspeitos de mandar matar a então vereadora Marielle Franco, em 2018, foram presos. Como ela também era da Maré, de que forma falar das crianças de lá hoje é também falar da Marielle e da luta dela?
Isabel Malzoni: A coisa mais linda do mundo foi no lançamento que fizemos lá na Maré. No final, um grupo do projeto social chamado Nenhum a Menos subiu ao palco e cantou uma música para a Marielle. Foi uma emoção generalizada. Uma coisa que surgiu muito é que eles querem ter o direito a não serem interrompidos, e acho que isso é herança da Marielle. Eles entenderam, com a Marielle, o quanto a vida deles é interrompida de tantas formas. E aprenderam a dar essa palavra do que acontece com eles, o quanto a vida deles é interrompida por tiroteios e por falta de recursos básicos. Muitas vezes, é interrompida mesmo como aconteceu com a Marielle e como acontece com tantas crianças e jovens que são mortos com certa frequência lá.
Ao dar voz a crianças da Maré, de que forma essas histórias também refletem os problemas de outras favelas brasileiras?
Por um lado, realmente [no livro] são as particularidades de serem favelas do Rio de Janeiro, porque existe uma mistura ali bem particular de facções armadas, do varejo de drogas, que gera esse contexto violento por si só. Você entra lá e vê tanta gente armada. E as crianças falam sobre isso no livro. Em São Paulo, por exemplo, é um contexto diferente.
E tem o fato também do quanto essas facções armadas estão integradas, por assim dizer, com o poder público e as milícias do Rio de Janeiro. Tem todo um contexto político ali de integração entre o tráfico e a polícia. A gente viu agora, com a prisão do delegado que investigava a morte de Marielle [Rivaldo Barbosa], então ele já estaria envolvido desde o início, por isso você tira o quanto realmente é muito mais complexo de se imaginar. E por isso ser tão violento… As operações policiais lá, o caveirão, essa coisa do helicóptero atirando, isso é muito particular do Rio de Janeiro, não só da Maré.
Agora, ao mesmo tempo, existe uma maneira de você ler isso como a forma como nosso país não dá conta de cuidar da infância como ela deveria, garantir o direito das crianças à educação, à saúde, à vida, ao ir e vir. É uma postura de não priorizar a infância e a vida de pessoas periféricas, um projeto antigo de, fala-se, genocídio de vidas negras, dos jovens negros.
Como surgiu Eu devia estar na escola?
A ideia do livro é de 2019, quando a Rede da Maré, ONG que atual nas favelas da Maré, fez uma iniciativa de reunir cartas de moradores da região que explicassem para o Tribunal de Justiça do Rio o que acontece durante as operações policiais [no complexo]. A maior parte dos participantes era criança e adolescente, fizeram desenhos e aí eu dei de cara com esses desenhos publicados num jornal. Foi meu primeiro contato com a Rede da Maré.
Fiquei impactada porque eram aqueles desenhos típicos de criança, pessoas de palitinhos, sol sorrindo, casinha quadradinha e, de repente, uma pessoa atirando, um helicóptero atirando. E as crianças fizeram cartas explicando sobre esse impacto [das operações] na infância delas, sobre a violência armada.
Em 2018 aconteceu o assassinato de um menino chamado Marcos Vinícius. morto com um tiro no peito na saída da escola. Um pouco antes de morrer ele falou para a mãe dele: “mas eles não viram que eu estava com roupa da escola?” Bala perdida, né? Foi um policial. Fiquei muito impactada e pensava em como falar com crianças e jovens sobre isso. No ano seguinte, as cartas foram minha resposta: quem vai poder falar são as próprias crianças. A gente construiu uma narrativa polifônica que conta o que acontece durante um dia de operação policial. A narrativa é toda delas [das crianças].
O título coloca como questão central a educação, a evasão escolar…
Essa demanda do direito à escola é muito frequente entre as crianças da Maré. Por causa da violência armada a que eles estão sujeitos com muita frequência, eles perdem mais ou menos 30 dias letivos por ano [segundo levantamento da ONG Rede da Maré]. É uma barbaridade. Eles perdem 30 dias por causa de tiroteios, de operações policiais que fecham tudo.
Tem um cálculo da Rede da Maré que diz que ao longo de toda a educação básica eles podem perder quase dois anos de aula. É um gerador de desigualdade social monumental. […] São crianças periféricas que escutam, desde que nasceram, que precisam estudar para melhorar de condição de vida, ou seja, a educação é a única saída para eles. Mas eles perdem esse direito cotidianamente, por isso o título do livro é esse, é uma coisa muito marcante.
Você vê solução para essas carências sociais?
Não acho que eu seja a pessoa para dizer como as carências poderiam ser resolvidas, porque é um problema gigante. Mas o que é importante dizer é como é que se lida com a questão da violência armada que já existe na favela e a polícia. Como lidar com isso que não seja fazendo as operações policiais com essa frequência, afetando tanto as 140 mil pessoas que vivem lá, para falar só de Maré.
Tem uma coisa que precisa ser colocada: as operações policiais deveriam ser medidas extraordinárias, deveriam acontecer depois de um trabalho de inteligência policial que identifique as ameaças e quem precisa ser preso, por exemplo, e aí atue cirurgicamente no alvo. O que acontece é que de extraordinário não tem nada, é muito frequente. E fica uma sensação de que é feito de qualquer forma, a torto e a direito, entra lá atirando, morrem muitas pessoas que não têm nada a ver com o assunto e nem de longe parece ser uma medida que funciona em alguma medida.
Não diminuiu a violência nas favelas porque eles entram atirando 30 dias por ano. Muito pelo contrário. A crítica é a essa política de segurança pública que parece muito mais uma briga de poder do que de fato uma política de segurança pública. É uma política de insegurança, né?