Quando se está diante da fachada da Catedral de Notre-Dame de Chartres não é preciso ser especialista em arquitetura medieval cristã para perceber que se trata de uma obra-prima. O interior da catedral é mais que isso. Passado o portal, a visão dos enormes vitrais que filtram a luz do Sol e a interpretam em todas as cores do arco-íris representa uma real imersão no mistério da espiritualidade cristã.

Construída entre os séculos 12 e 13, ela tem nove portas de madeira, com frontões esculpidos, que nos levam diretamente para os tempos medievais. Toda catedral digna desse nome é uma expressão em pedra da religião católica, mas Chartres é mais que isso: é um resumo de todas as igrejas através dos tempos.

As abóbadas do telhado, ligadas por nervuras de pedra aos pilares abaixo, combinadas com os arcobotantes exteriores permitem paredes mais finas, e a grande altura e grandes janelas da catedral. Crédito: MMensler/Wikimedia Commons

Templo celta

No alto da colina onde a igreja se situa, havia, em época pré-cristã, um importante templo pagão erigido pelos celtas. No século 4, sobre as ruínas do templo pagão, foi erguido um dos primeiros templos cristãos. Sabe-se muito pouco sobre ele, da mesma forma que sobre a maioria dos lugares de culto dos primórdios do cristianismo. Sua existência e localização costumavam ser cercadas de segredo, devido às perseguições.

Apenas a partir do ano 312, o cristianismo se tornou religião oficial do Império Romano. Depois disso, no sítio de Chartres, várias outras construções se sucederam: houve uma igreja em estilo medieval carolíngio, destruída pelos vikings em 858; uma outra em estilo românico, destruída em 1194 por um incêndio; até se chegar à catedral atual, em estilo gótico.

Chartres guarda vários relicários de santos e de grandes personagens da Igreja, inclusive o véu que, segundo se afirma, foi usado por Nossa Senhora no momento da Anunciação. Apesar desses tesouros, se a busca pessoal do visitante for por tranqüilidade, seu olhar irá seguramente convergir para os imensos vitrais. Eles contêm cerca de cinco mil figuras retratadas em 176 vitrais que cobrem uma área de 2.600 metros quadrados.

Detalhe do vitral dedicado à Notre-Dame de la Belle-Verrière. Crédito: Vassil/Wikimedia Commons

Um tom especial de azul

Os vitrais mais representativos são os das rosáceas da porta principal, que ilustram o Juízo Final, e o da capela norte, que representa a Glorificação de Nossa Senhora. A cor azul é onipresente nesses vitrais, mas trata-se de um azul especial, o azul da “Notre-Dame-de-la-Belle-Verrière”, cuja irradiante tonalidade celeste foi conseguida adicionando-se óxido de cobalto à pasta de vidro. A tonalidade é também conhecida como “azul de Chartres”.

Quando faltam as palavras, falam as imagens. Na Idade Média, quando 95% da população mundial era analfabeta, os vitrais funcionavam como livros. Na Catedral de Chartres, eles constituem uma verdadeira Bíblia em vidro. Mas Chartres não é famosa apenas pelos seus vitrais. Conta-se que outrora a porta sul da catedral só era aberta aos cavaleiros que alcançassem um elevado nível espiritual de conhecimento.

Ao entrar no templo, suas cabeças ficavam na altura dos pés da imagem de Cristo. Nesse ângulo de visão, a rosácea luminosa do vitral ao fundo parece flutuar ao redor dessa imagem de Jesus, conferindo a ela uma aura tremeluzente. Cristo cercado por uma mandala de luz multicolorida: uma visão de estontear.

Interior de Chartres, em alto estilo gótico. Crédito: Marianne Casamance/Wikimedia Commons

Requisitos precisos

É fácil, hoje, compreender por quais razões Chartres é considerado um lugar mágico e santificado. A catedral oferece aos olhos dos visitantes mais de quatro mil imagens e estátuas, muitas delas ainda não identificadas. Mas, na época pré-cristã, por qual razão os druidas, sacerdotes celtas, escolheram essa mesma colina onde hoje se erige a catedral como lugar sagrado?

Para todas as religiões, a escolha do local de um templo corresponde a requisitos bem precisos. Pode ser, por exemplo, a existência de uma nascente de água, o ruído do vento nas folhagens, a forma insólita de um rochedo, e até mesmo o silêncio. Diante de sensações ou de fenômenos da natureza que não pode explicar, o homem julga perceber a presença divina. E, nesses lugares, constrói seus santuários.

No subsolo da Catedral de Chartres correm veios d’água que, segundo radiestesistas, formam campos de forte energia telúrica. Na cripta do templo existe um poço profundo ao redor do qual, até hoje, algumas pessoas se prostram em oração. Até o século 16, os peregrinos vinham beber água dessa fonte, cultuada desde os tempos précristãos, atribuindo a ela poderes curativos e milagrosos.

A cripta também contém um santuário dedicado a Nossa Senhora do Subterrâneo, com uma bela imagem dessa Madona, de cor negra e de olhos fechados. Católicos sugerem que ela estaria dizendo: “Prestem atenção ao Menino que carrego, não em mim.”

 

Caminhando pelo labirinto da catedral. Crédito: Wikimedia Commons

Metáfora da peregrinação a Jerusalém

Para muitos estudiosos, no entanto, essa santa está ligada à antiga tradição das virgens negras. Madonas com essa cor podem ser encontradas em muitos templos cristãos europeus. Elas correspondem ao antigo culto celta à Grande Mãe Terra, que foi assimilado pela Igreja nos primeiros tempos do cristianismo.

Outra singularidade da catedral é o labirinto gravado nas pedras do seu piso. Com diâmetro de 12,6 metros, esse labirinto é uma projeção da rosácea principal rebatida no chão. Desenhos de labirintos traçados no solo de muitas igrejas medievais eram comuns. Os fiéis caminhavam sobre eles, percorrendo-os em oração, com o objetivo simbólico de libertar o espírito e encontrar a paz. Caminhar até o centro desses labirintos espiralados era uma metáfora da peregrinação a Jerusalém Celeste, a iluminação espiritual.

Se em Chartres interagimos com o Divino sem poder vê-lo, nas cidades de Nevers e de Paray-le-Monial – etapas seguintes do nosso itinerário de visita – podemos perceber centelhas divinas encarnadas em personagens humanos. Em Nevers, a religiosidade se ancora na figura de Bernadette Soubirous, a jovem noviça de 14 anos que durante seis meses, em 1858, viu aparições de Nossa Senhora, na gruta de Massabielle, em Lourdes. Em Paray-le-Monial, uma surpresa: Joana D’Arc, que todos pensam ser a santa xodó dos franceses, é menos cultuada que Marguerite-Marie Alacoque. Marguerite, por seu lado, teve diversas visões do Coração de Jesus em Paray-le-Monial, entre 1673-75.

Equilíbrio entre dimensões

“Não basta vê-la, tenho de ganhá-la”, dizia Bernadette Soubirous, quando as outras noviças lhe perguntavam por que, na sua opinião, tinha sido a escolhida. Quando ela morreu, em 1879, aos 35 anos, após quatro meses de muito sofrimento, seu corpo estava coberto de chagas. Ao ser desenterrada, no entanto, 40 anos depois, seu corpo estava intacto e ela parecia juvenil, serena e bela. Assim ela pode ser vista até hoje, em uma capela localizada no interior do Convento das Irmãs da Caridade, em Nevers.

É fácil seguir os passos de Bernadette durante os anos que viveu em Nevers. Num único espaço reúnem-se o convento, onde ela passou os últimos 13 anos de sua vida, a enfermaria onde faleceu, o museu com suas cartas e seus poucos objetos e uma réplica da Gruta de Massabielle. “Com exceção da gruta, tudo aqui foi preservado e pode ser visto exatamente como os olhos de Bernadette viam”, sintetiza irmã Geneviève, diretora do Espaço Bernadette.

Em um dos vários jardins internos do convento há uma imagem de Nossa Senhora das Águas, quase escondida na parede de um muro. Bernadette costumava rezar ali, em frente da imagem da santa. “Sua face era a que mais se parecia com o rosto da aparição”, dizia Bernadette.

Paray-le-Monial é bem menor que Chartres e Nevers, mas nada lhes fica a dever em termos de ressonâncias cristãs. Esse timbre é reforçado pelo acervo do Museu Eucarístico de Hiéron, único no mundo do gênero. Padre Édouard Marot, reitor do Santuário de Paray-le-Monial, estava certo quando disse que visitar o lugar era “fazer uma viagem que se equilibra entre duas dimensões, a espiritual e a turística”.

Universo interior

Marguerite-Marie Alacoque, o grande personagem de Paray-le-Monial, é praticamente desconhecida no Brasil. Mas é uma das santas católicas mais cultuadas na França. Suas visões do Coração de Jesus causaram, na época, verdadeira comoção em todo o mundo cristão e influenciaram diversos movimentos centralizados na simbologia compassiva do Coração. Para o padre Marot, sem essas aparições não teríamos hoje o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, tampouco a Igreja do Sacre Coeur, no bairro de Montmartre, em Paris. Ambos os monumentos são dedicados à devoção do Sagrado Coração.

Além da peregrinação aos lugares onde viveu Marguerite-Marie, Paray-le-Monial atrai visitantes também por outras atrações: sua basílica em estilo românico do século 11; a Capela da Aparição, com seus belos murais que retratam a visão de Marguerite-Marie; as capelas de la Colombière e de São João; o monumental Museu Eucarístico Hiéron. A luminosidade, no interior desse museu, é densa e forte, como se quisesse expor os objetos e pinturas em sua força máxima.

“O museu mostra o tema da eucaristia a partir de diferentes pontos de vista no decorrer dos séculos”, explica Dominique Dendrael, curadora do Hiéron. Diferente de outros museus que nos transportam para o passado ou para o futuro, este nos conduz diretamente ao nosso universo interior. Da mesma forma que o fazem os outros dois lugares de peregrinação cristã que visitamos na França: a Catedral de Chartres e os modestos aposentos onde viveu Bernadette Soubirous, em Nevers.

PARA SABER MAIS

www.franceguide.com

www.sanctuaires-paray.com

www.musee-hieron.fr

www.sainte-bernadette-nevers.com

www.nevers-tourisme.com

www.chartres-tourisme.com