Dez anos atrás, o trabalho de uma arqueóloga da USP fez história ao examinar, pela primeira vez, os restos mortais dos primeiros imperadores do Brasil — incluindo d. Pedro I e suas duas consortes, as imperatrizes d. Leopoldina e d. Amélia. Agora, um novo capítulo dessa pesquisa chega à era digital ilustrada com uma sofisticada coleção de retratos virtuais desses três personagens cruciais da história brasileira.

Os retratos foram construídos por um artista digital com base em evidências anatômicas, históricas e arqueológicas, compiladas pela equipe que analisou o conteúdo das tumbas imperiais. “É uma fusão de ciência e arte”, diz a arqueóloga e historiadora Valdirene Ambiel, responsável pelo projeto. O trabalho foi realizado para a sua tese de doutorado no Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP, sob orientação do professor Carlos Augusto Pasqualucci.

Simulação facial dos três monarcas

Aproximação facial de d. Pedro I, primeiro imperador do Brasil, retratado na idade em que faleceu (35 anos), vestindo a roupa e as insígnias com que foi sepultado, em 1834. Obra do artista digital Rodrigo Avila, para tese de doutorado da arqueóloga Valdirene Ambiel: “Estudo de aspectos antropométricos e médicos dos primeiros imperadores do Brasil”, defendida na Faculdade de Medicina da USP
Aproximação facial de d. Leopoldina, primeira imperatriz consorte do Brasil, retratada na idade em que faleceu (29 anos), vestindo a roupa e as joias com que foi sepultada, em 1826. Obra do artista digital Rodrigo Avila, para tese de doutorado da arqueóloga Valdirene Ambiel: “Estudo de aspectos antropométricos e médicos dos primeiros imperadores do Brasil”, defendida na Faculdade de Medicina da USP
Aproximação facial de d. Amélia, segunda esposa de d. Pedro I e imperatriz consorte do Brasil, retratada na idade em que faleceu (60 anos), vestindo a roupa com que foi sepultada, em 1873. Obra do artista digital Rodrigo Avila, para tese de doutorado da arqueóloga Valdirene Ambiel: “Estudo de aspectos antropométricos e médicos dos primeiros imperadores do Brasil”, defendida na Faculdade de Medicina da USP

Reconstituição fiel

Pedro, Leopoldina e Amélia são retratados na idade aproximada que faleceram (35, 29 e 60 anos, respectivamente), vestindo exatamente as roupas, joias e insígnias com que foram sepultados (em 1834, 1826 e 1873). A modelagem dos bustos e das faces — tecnicamente chamada de “aproximação facial” — foi feita pelo artista digital Rodrigo Avila, seguindo critérios estabelecidos por Valdirene Ambiel e seus colaboradores. A equipe inclui médicos patologistas, radiologistas, ortodontistas e especialistas em medicina forense.

Cada músculo foi posicionado sobre um modelo virtual tridimensional dos ossos da cabeça, do pescoço e do tórax de cada indivíduo, construído a partir das imagens de tomografia computadorizada de seus esqueletos, feitas em 2012. Características não preservadas nas ossadas, como o formato das orelhas e do nariz (que são feitos de cartilagem), foram moldadas de acordo com referências históricas, extraídas de quase uma centena de pinturas e litografias que foram feitas dos três monarcas no decorrer de suas vidas.

Um processo semelhante ao que um artista plástico utiliza para moldar um busto de argila, só que feito de forma digital, compara a pesquisadora. Três softwares foram usados no processo, chamados Radiant, Maya e Zbrusch.

Retratos fidedignos

O objetivo era retratar Pedro, Leopoldina e Amélia da forma mais fidedigna possível, com base em critérios científicos e valendo-se das novas tecnologias digitais. Mas Valdirene Ambiel faz questão de ressaltar que os retratos são uma estimativa da realidade e que não é possível reproduzir essas fisionomias do passado com 100% de acurácia — por isso ela faz questão de usar o termo “aproximação”, em vez de “reconstrução” facial, e rejeita a manchete de que esses seriam “os verdadeiros rostos” dos monarcas.

Os bustos digitais não são necessariamente melhores nem piores do que os retratos produzidos por artistas da época, diz ela — são imagens geradas num outro contexto, por outras pessoas e com técnicas diferentes. “Cada imagem tem o seu valor”, pontua ela. No caso de d. Amélia, que viveu até 1873, há quatro fotografias disponíveis no registro histórico, que também foram analisadas no estudo.

Pasqualucci lembra que mesmo as pinturas antigas não eram, necessariamente, um retrato exato da realidade, pois eram obras influenciadas tanto pelas habilidades do artista quanto pelas preferências individuais das pessoas retratadas. “O objetivo foi fazer essa aproximação facial usando critérios científicos e partindo de uma imagem em três dimensões, que traz uma precisão maior. É sempre uma aproximação, mas (dessa forma) a ideia é que você se aproxime mais da realidade”, aposta o professor. Ele espera que as imagens deem uma espécie de “vida nova” a esses personagens, no sentido de fazer as pessoas pararem e refletirem sobre o papel que eles tiveram na história do Brasil.

Aproximação facial de d. Pedro I, sem barba nem cabelo — parte de processo de simulação do rosto do imperador. Manipulação de imagem: Rodrigo Avila, para tese de doutorado da arqueóloga Valdirene Ambiel: “Estudo de aspectos antropométricos e médicos dos primeiros imperadores do Brasil”, defendida na Faculdade de Medicina da USP
Etapa de inserção de músculos sobre modelo virtual de esqueleto 3D do imperador d. Pedro I. Manipulação de imagem: Rodrigo Avila, para tese de doutorado da arqueóloga Valdirene Ambiel: “Estudo de aspectos antropométricos e médicos dos primeiros imperadores do Brasil”, defendida na Faculdade de Medicina da USP
Etapa de inserção de músculos sobre modelo virtual de esqueleto 3D do imperador d. Pedro I. Nesta imagem é possível ver que o monarca tinha desvio de septo. Manipulação de imagem: Rodrigo Avila, para tese de doutorado da arqueóloga Valdirene Ambiel: “Estudo de aspectos antropométricos e médicos dos primeiros imperadores do Brasil”, defendida na Faculdade de Medicina da USP

Crânio original de d. Pedro I, exumado para pesquisa arqueológica em 2012. Crédito: Valter Diogo Muniz

Legado principal

“O principal legado que eu espero que essa pesquisa traga é que as pessoas hoje, do século 21, possam olhar para esses personagens históricos do século 19 como seres humanos, que é o que eles realmente eram. Da mesma forma como nós temos a nossa vida hoje, eles tiverem a vida deles no passado”, diz Valdirene Ambiel.

Muito vaidoso e galanteador, d. Pedro é retratado com a barba e penteado que costumava usar nos últimos anos de sua vida (ele faleceu em 24 de setembro de 1834, um mês antes de completar 36 anos, em decorrência de problemas pulmonares). Ele veste a farda de general da rainha d. Maria II de Portugal, decorada com duas comendas: a Ordem da Torre e Espada (com formato de estrela, sobre o peito esquerdo) e o Tosão de Ouro (pendurado no pescoço com uma fita vermelha).

Dona Leopoldina de Habsburgo-Lorena, primeira esposa de d. Pedro e imperatriz consorte do Brasil, aparece com o traje de gala que usou na coroação do marido e com o qual foi sepultada, incluindo vestido, manto e um exuberante toucado (ornamento de cabeça), composto de tiara e penas — também retratado em tela por Simplício de Sá, em 1826. Leopoldina morreu em 11 de dezembro de 1826, prestes a completar 30 anos de idade, por complicações decorrentes de um aborto espontâneo. Ela teve seis filhos com d. Pedro I.

Dona Amélia de Leuchtenberg, segunda esposa e imperatriz consorte de d. Pedro, é retratada com o véu, vestido preto e touca de borda branca com que foi sepultada, aos 60 anos de idade. Uma das maiores surpresas oriundas da abertura dos caixões em 2012 foi constatar que o cadáver de d. Amélia estava muito bem conservado, com grande parte dos tecidos moles (músculos e pele) e até mesmo cílios, sobrancelhas e cabelo preservados — resultado do processo de embalsamamento do corpo e da boa vedação do caixão. Nos cinco anos em que estiveram juntos (1829-1834), d. Amélia e d. Pedro tiveram uma única filha. Ela morreu de parada cardíaca em Lisboa, em 26 de janeiro de 1873, quatro décadas depois do marido.

Além da pesquisa histórica, os pesquisadores acreditam que a metodologia aplicada para a aproximação facial no estudo possa ser útil para aplicações forenses, na identificação de ossadas de vítimas de crimes e pessoas desaparecidas.

Ao abrirem o caixão em 2012, pesquisadores acharam o cadáver de d. Amélia em ótimo estado de conservação. Crédito: Beatriz Monteiro

Aspectos médicos

Valdirene Ambiel defendeu sua tese de doutorado na manhã de 7 de março, na Faculdade de Medicina da USP, com o título “Estudo de aspectos antropométricos e médicos dos primeiros imperadores do Brasil”. As imagens de tomografia que serviram de base para o trabalho foram produzidas em 2012, quando a arqueóloga conseguiu autorização para analisar os restos mortais dos três monarcas, depositados na cripta do Monumento à Independência. Além do trabalho arqueológico realizado dentro da própria cripta, as urnas funerárias foram escaneadas, com todo o seu conteúdo, por meio de um tomógrafo no Hospital das Clínicas da FMUSP.

Depois de escaneados, os caixões foram colocados de volta nos seus respectivos sarcófagos da Cripta Imperial, onde permanecem até hoje. No total, foram geradas cerca de 20 mil imagens digitais de cada corpo.

A primeira fase da pesquisa — descrita na dissertação de mestrado da pesquisadora, em 2013, no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE) — já havia revelado vários detalhes sobre a vida e a morte dos três personagens. Por exemplo, o fato de que d. Pedro I teve algumas costelas fraturadas em acidentes com cavalos e foi sepultado com roupas de general, deitado sobre uma camada de solo português, provavelmente da região do Porto. Também serviu para desfazer algumas lendas urbanas muito antigas, como a de que d. Leopoldina teria quebrado o fêmur ao ser empurrada escada abaixo pelo marido durante uma briga no Palácio da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, e que essa fratura teria eventualmente resultado na sua morte. A tomografia do esqueleto da imperatriz, porém, não revelou nenhuma fratura, em nenhum dos fêmures.

Além das aproximações faciais, a nova pesquisa de doutorado traz informações adicionais sobre a história desses primeiros imperadores e seus familiares, incluindo uma série de detalhes sobre o estilo de vida, a saúde e as causas de morte de cada um deles.

Um dos destaques do trabalho é a transcrição inédita do laudo original da autópsia realizada no corpo de d. Pedro no dia seguinte ao da sua morte, em 25 de setembro de 1834, e guardado no Arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa. Segundo Pasqualucci, as informações da autópsia corroboram o diagnóstico histórico de que o imperador morreu de tuberculose pulmonar, com várias alterações visíveis nos tecidos do pulmão.

As imagens de tomografia do crânio de d. Pedro I revelam que ele tinha um desvio acentuado do septo nasal para a esquerda, que podia causar um certo desconforto respiratório ao imperador, mas que não afetava a aparência externa do nariz, visto que os ossos nasais aparecem simétricos e bem alinhados no crânio. Há um sinal de fratura no osso nasal esquerdo, mas a tese apresentada na pesquisa é que essa quebra aconteceu após a morte, possivelmente nos procedimentos de exumação ou de transporte da ossada do imperador de Portugal para o Brasil, ocorrida em 1972 (no aniversário de 150 anos da Independência).

Autópsia de d. Pedro I. Crédito: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Dentes bem cuidados

O trabalho faz uma análise detalhada da saúde odontológica dos imperadores, preservada nas ossadas. D. Pedro tinha os dentes bem cuidados, sem lesões de cárie, o que sugere, segundo a pesquisa, que ele era cuidadoso com a higiene oral e provavelmente consumia poucos carboidratos. D. Leopoldina tinha a mordida cruzada e apinhamento severo dos dentes frontais da maxila, enquanto d. Amélia faleceu quase que completamente sem dentes, com apenas cinco remanescentes no arco inferior da boca.

Também colaboraram com o trabalho: Marcelo Bordalo Rodrigues, Sergio José Zeri Nunes, Luiz Roberto Fontes, Eduardo Moreno Nery Vieira, André Kerber, Luciana Domingues Conceição, Sergio Freitas Ribeiro e Marcos Antônio Laboissière Junior.

Mais informações: Valdirene Ambiel (v.ambiel@fm.usp.br) e Carlos Augusto Pasqualucci (cpasqua@usp.br).

* Este artigo foi publicado originariamente no site Jornal da USP. Leia o artigo original aqui.