Maior entrave no combate ao crime organizado é falta de coordenação entre governo federal e estados, afirma à DW o promotor paulista Lincoln Gakiya, jurado de morte pelo PCC. Ele tem uma proposta sobre isso.Há mais de 20 anos, o promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do Ministério Público de São Paulo, vem tentando conter o Primeiro Comando da Capital (PCC). Tarefa dura, que já lhe custou ameaças de morte e a necessidade de andar sempre com escolta.

Por conhecer bem os meandros desse tipo de organização criminosa , ele foi um dos convidados a participar dos debates que resultaram no Projeto de Lei (PL) Antifacção, enviado pelo Palácio do Planalto ao Congresso após a operação policial no Rio de Janeiro contra o Comando Vermelho , a mais letal da história do estado .

O PL Antifacção está no centro de uma disputa política entre governo e oposição desde que o deputado federal Guilherme Derrite (PP-SP), secretário de Segurança Pública licenciado do estado de São Paulo, foi escolhido para relatar o texto e mudou radicalmente seu teor – inclusive para reduzir a autonomia da Polícia Federal e equiparar as facções criminosas a terroristas .

Esses itens foram posteriormente retirados por Derrite, que está na quarta versão de seu relatório. O presidente da Câmara, Hugo Motta, afirma que colocará o PL Antifacção em votação no plenário nesta terça-feira (18/11).

Gakiya vê aspectos positivos na atual versão do texto, como a possibilidade de autoridades confiscarem cautelarmente bens de envolvidos com organização criminosa ou decretarem intervenção em empresas que negociem com essas fações, além de aumento de penas e prazos para progressão de regime.

Por outro lado, ele critica, entre outros pontos, a ausência de graduação de pena de acordo com o envolvimento da pessoa na organização – “não dá para você pegar um integrante do PCC que acabou de ser batizado e impor a ele a mesma pena do Marcola” – e entre facções de diferentes tamanhos.

Mais importante que isso: a falta de coordenação entre governos federal e estaduais, segundo ele o principal problema no combate às facções, não será resolvido nem pelo PL Antifacção, nem pela PEC da Segurança Pública que o Planalto deseja aprovar. Inspirado na experiência da Itália no combate à máfia, ele defende a criação de um órgão autônomo a nível federal para conduzir essa união de esforços.

Indagado sobre o que o motiva a seguir no combate ao crime organizado mesmo com as ameaças que sofre, Gakiya aponta para a melhoria da qualidade de vida do cidadão das áreas dominadas por facções. “Estamos discutindo, vemos os políticos discutindo, mas o cidadão lá na ponta, mais de 30 milhões, talvez 40 milhões de pessoas, vivem sob o jugo de territórios dominados por organizações criminosas”, diz.

DW: O crime organizado no Brasil está ficando mais forte?

Lincoln Gakiya: Com certeza, ele se sofisticou, deixou o interior dos presídios, ganhou as ruas e hoje está infiltrado na economia formal . Com o PCC a gente vê isso aqui em São Paulo, uma realidade bem diferente daquela que conheci nos anos 1990, quando ingressei no Ministério Público.

Em quais setores da economia ele está se infiltrando?

Diversos ramos. Antes da operação sobre [o setor de] combustíveis, demonstramos a infiltração do PCC no transporte público metropolitano de São Paulo. Eles capturaram a direção de duas empresas de ônibus, transportavam mais de 25 milhões de passageiros por mês. Essas duas empresas ganharam licitações e a diretoria estava capturada pelo PCC.

Para a lavagem de dinheiro, eles começam a se infiltrar na economia formal, montando empresas que não são empresas de fachada, são empresas que prestam o serviço e que disputam o mercado com outras empresas lícitas.

Há infiltração do crime organizado nos partidos políticos?

Temos que esperar algum tempo para verificar como essa situação vai se desenvolver. O que tenho percebido nas últimas eleições foi uma infiltração no PCC no financiamento de campanhas, sobretudo a vereadores e a prefeitos. Isso a gente já detectou. Agora, a influência do PCC em partidos políticos, não.

O presidente da Câmara, Hugo Motta, pretende votar o PL Antifacção nesta terça-feira. Qual é sua avaliação sobre o texto em discussão?

Fiz parte do grupo de trabalho do Ministério da Justiça que elaborou o texto-base do projeto de lei do governo. O projeto atual manteve algumas inovações, como cautelarmente confiscar bens de envolvidos com organização criminosa, e cabe ao criminoso o ônus da prova de que esses bens foram adquiridos com recursos lícitos.

Tem outras questões, como a intervenção na pessoa jurídica que esteja negociando com organizações mafiosas ou na própria pessoa jurídica constituída por organização mafiosa. E aumento de pena, aumento dos prazos de progressão de pena, proibição de livramento condicional, anistia, graça ou indulto para aqueles crimes ultraviolentos, segundo a denominação do próprio deputado [Derrite].

Mas acredito que esse texto, como provoca mudanças estruturais na nossa legislação penal e processual penal, deveria ser submetido a um amplo debate antes de ser votado, e me parece que não é essa a situação.

Algum outro item do texto merece atenção?

Precisávamos de uma legislação que diferenciasse esse tipo de organização criminosa. Se temos um fenômeno que já está na Faria Lima, criando as próprias fintechs, precisamos realmente de um combate diferente. Mas o que a gente viu foi um nivelamento – uma facção criminosa com atuação num bairro ou numa comunidade vai ter a mesma classificação do PCC e do Comando Vermelho. Nisso não andou bem nem o projeto do governo nem o substitutivo do Derrite.

E a gente pretendia que tivesse graduação de pena de acordo com a participação do integrante. Não dá para você pegar um integrante do PCC que acabou de ser batizado e impor a ele a mesma pena do Marcola, de 20 a 40 anos. Não é apenas o aumento de pena que vai solucionar o problema de segurança pública no país.

No feminicídio a pena foi majorada para 20 a 40 anos, que é a mesma pena que se espera das organizações criminosas, e o aumento da pena por si só não foi capaz de dissuadir o agressor de matar as mulheres. Os feminicídios aumentaram, não diminuíram.

Isso precisa ser refletido, porque se não se passa uma falsa ideia de que vamos resolver o problema do crime organizado apenas com o recrudescimento das penas. Isso é importante e defendo também, mas precisa ter políticas públicas de Estado para a reocupação desses territórios ocupados há muito tempo pelo crime organizado.

O governo afirma que o substituto de Derrite irá reduzir os recursos para fundos federais de segurança pública, isso é um problema?

Não quero entrar nessa crítica específica. Normalmente [os recursos apreendidos do crime] vão para o fundo federal e o fundo depois repassa aos estados. O que se previa no substitutivo é que nas operações e investigações que são do estado esses recursos ficariam em cada estado. Cabe ao Congresso discutir qual seria a melhor forma de divisão desse bolo.

O mais importante é que nenhum dos dois projetos [do governo e de Derrite] prevê quem vai aplicar essa legislação e como vai aplicar. Temos no Brasil um problema muito sério de falta de coordenação e de integração entre as forças de segurança.

Como viabilizar maior coordenação entre governos federal e estaduais na segurança pública?

É o maior desafio. Vejo uma total descoordenação. Os estados, internamente, já têm problema de coordenação e de integração. As polícias estaduais militares e civis não raro apresentam conflitos entre si.

As organizações criminosas não atuam mais só no estado de São Paulo ou só no Rio de Janeiro, falando de PCC e Comando Vermelho. Elas atuam no Brasil, têm atuação transnacional. E a falta de cooperação e coordenação interna é o maior problema.

Não temos hoje nenhum órgão capaz de fazer isso. A Polícia Federal não tem condições de fazer essa coordenação e a integração. O Ministério Público também não é vocacionado para isso.

O Planalto quer aprovar também uma PEC da Segurança Pública. É necessário alterar a Constituição para combater melhor o crime organizado?

Acho a PEC bem-vinda, precisamos de um assento constitucional que diga que cabe ao governo federal coordenar as políticas públicas relativas à segurança no Brasil. Assim como na área da educação e na área da saúde – você não pode elaborar um projeto de educação totalmente divorciado do plano nacional. Cabe ao governo federal coordenar as políticas públicas e os esforços no sentido de desenvolver a segurança pública, junto com os estados e preservando as autonomias dos estados.

Mas a PEC não soluciona esse problema. Como é que o governo federal fará isso? Por meio do Ministério da Justiça? O Ministério da Justiça não tem condições hoje de coordenar junto com os estados o combate a organizações criminosas, porque sempre é permeado pela questão política, e isso atrapalha demais.

O senhor é coautor de um livro lançado recentemente, Segurança Pública: o Brasil livre das máfias, e uma das suas propostas é criar uma Autoridade Nacional Antimáfia. Como funcionaria?

Precisamos ter um órgão autônomo e independente que possa, independente dessas pressões políticas, contando com a participação das forças de segurança federais e estaduais, ministérios públicos, Receita, órgãos de controle como o Coaf, montar equipes de investigação que possam fazer frente a esse tipo de criminalidade interestadual e transnacional.

Os diretores desse órgão seriam nomeados como são os das agências reguladoras?

As agências no Brasil nem sempre funcionaram bem. O que a gente previu é que a autoridade fosse nomeada pelo presidente da República, sabatinada pelo Senado, com um mandato fixo que não coincidiria com o mandato do presidente da República, e ela formaria a sua diretoria. Não seria como as agências reguladoras, se assemelharia mais à configuração do Banco Central.

O que o motiva a enfrentar o crime organizado, mesmo que isso custe seguidas ameaças de morte?

É minha função, estou no Ministério Público há 34 anos e há mais de 20 atuo especificamente no combate ao crime organizado, principalmente ao PCC. Fiz disso uma missão de vida.

O que me motiva é acreditar que a gente possa pelo menos oferecer uma investigação mais qualificada, uma persecução penal mais qualificada, e melhorar a vida do cidadão. Estamos discutindo, vemos os políticos discutindo, mas o cidadão lá na ponta, mais de 30 milhões, talvez 40 milhões de pessoas, vivem sob o jugo de territórios dominados por organizações criminosas. Esse é o meu desafio, mesmo custando restrição à minha liberdade e ameaças à minha vida.