Para o governo do Mato Grosso do Sul, oferecer plásticas a crianças e adolescentes é saída contra o bullying. Algo que não surpreende no Brasil, vice-campeão mundial em número de cirurgias do tipo.O que fazer quando uma criança ou adolescente está sofrendo bullying na escola, com ofensas em relação à aparência? Educadores e especialistas no tema estudam muito sobre isso. É preciso ensinar diversidade nas escolas, punir agressores e acolher os alunos que são vítimas, só para citar algumas medidas óbvias. Há muito o que discutir sobre esse tema super importante.

O Mato Grosso do Sul resolveu apostar numa solução diferente: para o governo do estado, uma maneira de combater o bullying seria ajudar crianças e adolescentes a conseguir o acesso a cirurgias plásticas. Não, não estou inventando.

O plano foi anunciado no mês passado. A iniciativa, segundo o governo do MS, tem como objetivo “diminuir a evasão escolar decorrente dessa situação [bullying]”.

O governo anunciou que, no cardápio das plásticas que serão oferecidas, estão rinoplastia, otoplastia, redução de tamanho de seio e cirurgias oculares.

Quem sofre é a vítima

Para pedir a cirurgia, as vítimas deverão apresentar boletins de ocorrência. Ou seja, o responsável pela criança ou adolescente registra um crime na delegacia, e, em vez de punir os responsáveis pelo bullying, quem sofre é a vítima.

Sim, é absurdo. Culpa-se, nesse caso, a vítima pela agressão. A solução seria “moldar” o corpo de uma criança ou um adolescente ao “senso comum”. A vítima que tome pontos, sinta dor e corra riscos, ela que se adapte, se transforme. Tudo fica pior, claro, porque estamos falando de crianças e adolescentes que serão estimulados a fazer cirurgias, tomar anestesia e correr riscos (toda cirurgia os têm). Além disso, uma criança ou adolescente tem chance maior de se arrepender depois de uma plástica.

Essa solução lembra a velha ideia de culpar a roupa de uma mulher pelo estupro. Não, a culpa pelo bullying não é um nariz “maior que o padrão”, mas de quem agride os outros devido à aparência. Simples, não?

Apesar de assustador, não é exatamente surpreendente que algo como o proposto no MS aconteça no Brasil, vice-campeão mundial em número de cirurgias plásticas (o país vive “disputando” essa triste liderança com os Estados Unidos).

As plásticas são tão banalizadas no Brasil que o fato de um estado resolver combater o bullying oferecendo cirurgias para crianças e adolescentes nem virou um escândalo. O assunto foi noticiado aqui e ali, mas não causou grande comoção. Como pode? Fechamos os olhos?

Tendência no TikTok

Outros absurdos sobre o mesmo tema também estão acontecendo sem que se preste muita atenção. No momento, vídeos de plásticas estrelados por jovens bombam no TikTok.

Entre os que fazem mais sucesso, estão os de “antes e depois de plásticas” e vídeos de “minha primeira cirurgia”. Neles, meninas e jovens mulheres mostram a rotina pré e pós-cirurgia, com direito a looks do dia (o avental hospitalar) e foto de comida de hospital.

Alguns desses vídeos foram feitos pelas influenciadoras adolescentes Maria Nicolly e Maria Emanuelly, gêmeas de 16 anos que têm mais de 5 milhões de assinantes no canal de YouTube “Eu, você e nós”.

Em um dos vídeos, Nicolly mostra a plástica feita em família, já que mãe e filhas se operaram no mesmo hospital. Em outro deles, que tem o título “nossa primeira cirurgia plástica aos 16 anos”, as duas dançam com roupa hospitalar ao lado do cirurgião. Todos os detalhes foram também compartilhados no canal de YouTube da família.

As gêmeas não são um caso isolado. Basta procurar pela “primeira cirurgia plástica” no TikTok para encontrar centenas de vídeos de meninas muito jovens exibindo suas cirurgias como se se tratasse de algo banal como “pintei meu cabelo de rosa”.

Plástica não é brincadeira

Esses vídeos, obviamente, influenciam outras meninas, que vão comprar a ideia de que fazer uma cirurgia não é nada de mais. Uma corrente perigosa, por meio da qual a insatisfação com o próprio corpo, tão comum na adolescência, é turbinada.

Além dos danos psicológicos envolvidos, plásticas podem ser, de fato, perigosas. Só no mês de junho, ao menos duas mulheres morreram no Brasil por conta de cirurgias do tipo. No Maranhão, Erinalva de Jesus Dias, de 37 anos, morreu depois de fazer uma abdominoplastia, que teria sido realizada por um enfermeiro. No Rio de Janeiro, Ingrid Ramos Ferreira, de 41 anos, também morreu após o mesmo procedimento.

Cirurgia plástica não é brincadeira. E nem solução contra bullying.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.