19/04/2022 - 13:55
Flanqueado pela Praça Vermelha, com sua catedral ostentando cúpulas douradas, o Kremlin domina o rio Moscou com seus vastos muros. Há quase nove séculos, o imponente edifício, nascido como fortaleza de madeira, tem sido um ponto focal da história do país, além de sede para seus governantes. “O Kremlin é a encarnação da Rússia”, afirma a historiadora britânica Catherine Merridale, “ele representa o poder estatal.
Quando o presidente russo, Vladimir Putin, recebeu sucessivamente seu homólogo francês, Emmanuel Macron, e o chanceler federal alemão, Olaf Scholz, para conversas, antes da invasão da Ucrânia, rodou mundo a imagem dos líderes separados por uma longa e opulenta mesa branca.
“O Kremlin é também um grandioso teatro”, explicou a especialista de longa data em Rússia ao jornal Süddeutsche Zeitung. Ela começou a pesquisar o Kremlin na década de 1980, e em 2014 publicou o aclamado Red Fortress (Fortaleza Vermelha), sobre 500 anos de poder, desde Ivã, o Terrível até Putin.
A majestade e impressionantes dimensões do Kremlin visavam funcionar como arquitetura de intimidação, pois os palácios czaristas deviam ser maiores e mais impressionantes do que qualquer outra coisa na Europa. Assim como seus antecessores, Putin sabe usar o complexo arquitetônico a seu favor, impressionando os meros mortais com “os salões cintilantes, os candelabros”: “A intenção é deixar estupefato”, diz Merridale.
“Monumento satânico”, “adereço para tiranos”
Apesar de o tsar Pedro, o Grande (1672-1725) ter transferido a sede do governo de Moscou para São Petersburgo, no Mar Báltico, o Kremlin nunca perdeu sua atratividade para os dirigentes russos. O diplomata francês marquês Astolphe de Custine via nele um “monumento satânico” e “um adereço para tiranos”.
Após uma longa viagem pela Rússia, no verão de 1839, o autor retratou o regime autoritário: “O despotismo reprime o livre desenvolvimento dos seres humanos. Todos são servos e, sobretudo em relação aos estranhos, tornam-se desconfiados e cheios de segredos.”
Custine fundamentou suas observações na história do país do Leste Europeu: “Pedro 1º e Catarina 2ª deram ao mundo uma grande lição, pela qual a Rússia teve que pagar: eles nos mostraram que se deve temer o despotismo mais do que nunca quando ele quer criar coisas boas, pois aí crê poder justificar, com suas intenções, as ações mais ultrajantes, e o mal disfarçado de remédio não conhece mais fronteiras.”
Um comentário severo, que se aplicaria perfeitamente também à atual guerra de Putin na Ucrânia. Ainda assim, o francês admirou o “método de construção original russo”, que se norteava pelas necessidades nacionais e que os arquitetos do país deveriam seguir como exemplo.
Proteção contra epidemias e atentados
Em decorrência da invasão mongol, no século 14 os líderes da confederação medieval informal da Rus de Kiev – atuais Rússia, Ucrânia e Belarus – se instalaram no Kremlin. Lá construiu-se uma igreja que futuramente seria a Catedral da Dormição, também conhecida como “da Assunção”, com sua cúpula dourada, perpetuando assim a presença da Igreja Ortodoxa no Kremlin.
Catherine Merridale frisa que a Igreja Ortodoxa Russa sempre assegurou coesão num Kremlin muitas vezes politicamente dividido: “Putin usou essa conexão em benefício próprio como nenhum outro chefe de Estado. Ele reza publicamente, acende velas, mantém-se em contato com o patriarca.”
Por longo tempo o Kremlin permaneceu apenas como residência dos czares. Só em 1918, com a derrubada de Nicolau 2º e a ruptura da autoridade da Igreja Ortodoxa, o Kremlin voltou a se tornar o centro do poder. Pois, quando os bolcheviques o tomaram, os líderes comunistas logo se lembraram das vantagens da antiga fortaleza.
Além de ícone cultural, a poderosa construção protege contra atentados e assassinatos políticos. E até mesmo contra epidemias fatais: Vladimir Lenin (1870-1925) mantinha uma câmara de desinfecção própria ao lado do quarto de dormir, e assim escapou da cólera, tifo e da “gripe espanhola”. “Putin aprendeu muito com Lenin nesse sentido, pois tem pânico de se infectar”, compara Merridale.
O sucessor de Lenin, Josef Stalin (1878-1953), também mantinha cautela: após o assassinato de um aliado seu, refugiou-se na fortaleza, e mais tarde expulsou de lá seus velhos camaradas. O ditador não confiava em mais ninguém, e começou a era das expurgos e dos grandes julgamentos de fachada.
Ao proibir a organização de direitos humanos Memorial, Putin intencionalmente recalca a memória dos crimes stalinistas, observa a autora: o atual chefe do Kremlin se vê como uma continuidade dos grandes líderes da Rússia, acima de tudo de Ivã 4º, ou Ivã, o Terrível, e do também tirano Pedro, o Grande.
O homem mais bem protegido da Rússia
Paradoxalmente, o “degelo” da União Soviética iniciado por Nikita Krushchev e a glasnost (transparência) de Mikhail Gorbachev reaproximaram o Kremlin do povo russo. O verdadeiro ponto de inflexão veio em 1991: após um golpe de Estado fracassado contra Gorbachev e Boris Yeltsin, este se mudou para a fortaleza vermelha.
Por um breve período, dois presidentes exerceram o cargo paralelamente. Mas o regime comunista virara história, e o Kremlin voltou a ser o centro da Rússia. Em maio de 2000, Vladimir Putin tornou-se chefe de Estado pela primeira vez. O presente autocrata russo, aliás, não tem nada além de desprezo por Gorbachev, que responsabiliza pelo fim da União Soviética.
Enquanto as cúpulas douradas resplandecem ao longo do rio Moscou, o campanário branco de Ivã, o Grande reina, majestoso, sobre as igrejas e palácios. Acima de tudo, paira a bandeira russa. Do lado de fora, o Kremlin parece extremamente poderoso.
Internamente, porém, há o perigo de se perder completamente, comentou Catherine Merridale ao Süddeutsche Zeitung: “Quem remove todos os críticos se torna um prisioneiro do próprio ego.” O séquito só repete o que Putin quer escutar: “Ele é a pessoa mais bem protegida da Rússia. Tão cedo, não vamos nos livrar dele.”