Evento extremo já causou milhares de mortes no Brasil, mas ainda carece de estudos, sistemas de alerta e medidas de adaptação nas cidades.As ondas de calor aumentaram no Brasil nos últimos anos e devem se tornar mais intensas no futuro, segundo um estudo recente da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que mostra que os bloqueios atmosféricos, que impedem a chegada de frentes frias e geram esse fenômeno, podem se tornar dez vezes mais potentes até 2071.

As ondas de calor são descritas por pesquisadores como desastres negligenciados e até mesmo como assassinas silenciosas, já que não deixam rastro de destruição como tempestades ou incêndios florestais. Esses eventos extremos, intensificados pelas mudanças climáticas, já causaram milhares de mortes no Brasil, afetando principalmente os idosos, os pretos e pardos e as mulheres.

Segundo um relatório do World Weather Attribution (WWA) publicado no fim do ano passado, as ondas de calor são o tipo de evento extremo mais mortal. O perigo das altas temperaturas, no entanto, é muitas vezes subnotificado e subestimado.

Os cientistas recomendaram a adoção de sistemas para definir ondas de calor e alertar a população. Sugeriram até mesmo a disponibilização de relatos em tempo real de mortes para aumentar a conscientização sobre os seus perigos.

Sem dados oficiais

O Brasil não possui dados oficiais sobre mortes por calor. O Atlas Digital de Desastres, por exemplo, não contabilizou nenhum óbito na sua série histórica, entre 1991 e 2023. Dados preliminares do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) registraram apenas quatro mortes por exposição a calor natural excessivo em 2024.

Mas entre 2000 e 2018, ocorreram cerca de 48 mil mortes em excesso durante ondas de calor apenas nas 14 principais regiões metropolitanas do país. Os dados são de um estudo publicado em 2024 por pesquisadores do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O número é 20 vezes maior que as mortes causadas por deslizamentos de terra, segundo os cientistas. Foi esse estudo que chamou as ondas de calor de “desastre negligenciado”. Um dos motivos para a falta de dados é a dificuldade em associar uma morte diretamente ao calor.

“Geralmente, as mortes são atribuídas a doenças cardiorrespiratórias, renais, entre outras. Para um melhor mapeamento, é essencial a realização de mais estudos como o nosso, além de uma maior integração entre os dados de saúde, meteorológicos e da defesa civil, o que possibilitaria a identificação mais precisa de óbitos ocorridos em contextos de desastres”, afirmou o físico e pesquisador da UFRJ Djacinto Monteiro, que liderou o estudo.

A desigualdade do desastre

As temperaturas precisam ficar 5 °C ou mais acima da média histórica por pelo menos cinco dias e abranger uma grande área para ser classificada como uma onda de calor, de acordo com Danielle Barros Ferreira, meteorologista do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).

Neste ano, já ocorreram três ondas de calor. Embora muitas cidades tenham registrado altas temperaturas, como ocorreu no Carnaval, todos os eventos ocorreram no Rio Grande do Sul, segundo o Inmet.

“Nós estamos vendo mais episódios de ondas de calor. E ano passado tivemos o ano mais quente no Brasil. Também estão ficando mais frequentes outros eventos extremos, como chuvas mais intensas em poucas horas, como vimos em São Paulo, e secas prolongadas, como ocorreu na Amazônia e no Pantanal”, avaliou Ferreira.

O aquecimento global causado pelos seres humanos é a causa dessa mudança em nível global, explicou a meteorologista. “Mas há também uma questão local. Nas cidades, há substituição de áreas verdes por asfalto, construção de prédios e aumento da circulação de transporte. Tudo isso é um conjunto de fatores que tem contribuído para que o clima tenha mudado.”

As consequências, no entanto, são desiguais. O estudo do Lasa mostrou que cerca de 75% das mortes no Brasil são de idosos com mais de 65 anos. Elas estão associadas a doenças cardiovasculares e respiratórias, mas também a doenças renais, do sistema nervoso e até transtornos mentais.

Outro estudo, publicado em fevereiro na plataforma MedRxiv – ainda sem a revisão dos pares –, também relacionou o aumento das mortes com o calor. Ao analisar dados da cidade do Rio de Janeiro, a pesquisa concluiu que quando a temperatura é superior a 40 °C por quatro horas ou mais, ocorre um aumento de 50% na mortalidade por doenças como hipertensão, diabetes e insuficiência renal entre idosos.

O trabalho do Lasa mostrou ainda diferenças entre os gêneros. As mulheres, em todas as regiões estudadas, tiveram um aumento proporcionalmente maior na mortalidade, especialmente entre as mais velhas.

“Utilizamos também outros dois indicadores socioeconômicos para entender a relação entre desigualdades estruturais e vulnerabilidade ao calor. A análise de mais de sete milhões de registros de óbitos mostrou que o impacto do calor foi maior entre pessoas pretas, pardas e com menor nível de escolaridade”, explicou Monteiro.

Ninguém está preparado

Com relação às políticas públicas de enfrentamento ao problema, ainda estamos muito distantes do ideal, avaliou Monteiro. “Nenhum setor da nossa sociedade está suficientemente preparado para lidar com esse problema, mas existem sim algumas iniciativas bem-sucedidas.” Entre elas está o sistema de monitoramento e alerta de ondas de calor da cidade do Rio de Janeiro.

O município criou, em junho do ano passado, o Índice de Calor (IC), que compila dados como temperatura e umidade. Em fevereiro, foi registrado o nível 4, o segundo mais alto na classificação. Com isso, a prefeitura disponibilizou pontos de resfriamento – espaços públicos com ar-condicionado ou refrigeração –, além de ter orientado a população sobre os riscos da exposição ao sol.

O Ministério da Saúde informou, em nota, que acompanha os eventos de altas temperaturas e ondas de calor devido aos seus impactos na saúde pública, por meio da Sala de Situação Nacional de Emergências Climáticas. Além de produzir documentos técnicos, produz conteúdos informativos para redes sociais, com orientações para a população e profissionais de saúde sobre os riscos e as medidas preventivas a serem adotadas.

Informar a população é importante, mas é apenas uma parte da solução, salientou Monteiro. “A maioria das pessoas precisará ir ao trabalho mesmo com um alerta de onda de calor. Portanto, é essencial que o transporte público esteja adaptado e climatizado. Além disso, as estações de trem, metrô e terminais de ônibus devem oferecer pontos de hidratação, com distribuição gratuita de água, e pontos de acolhimento para aqueles que venham a passar mal devido ao calor.”

Mais verde, menos concreto

É imprescindível que as cidades estejam adaptadas a este cenário. Mas ainda há poucas políticas públicas voltadas para enfrentar as mudanças climáticas, avaliou o professor de Planejamento Urbano da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Elson Manoel Pereira. “Há muito negacionismo, mas também há muito relativismo. Como se esses eventos sempre existissem.”

A temperatura urbana tem uma relação direta com a impermeabilização do solo, ou seja, a supressão de árvores e áreas verdes e o uso de concreto e asfalto, que formam ilhas de calor. “Poderia ter, pelo menos, talvez por meio de uma lei federal, a obrigatoriedade de ter áreas de infiltração e vegetação densa para que pudesse amenizar os efeitos das construções”, sugeriu.

Uma das formas de fazer isso é através das cidades-esponjas, uma solução baseada na natureza. O objetivo é criar amplos espaços verdes nas cidades, que ajudam tanto na infiltração da água da chuva quanto na diminuição do calor da cidade, fornecendo até mesmo sombra para as pessoas se refrescarem.

Reduzir o tráfego de carros e aumentar o transporte público, de preferência movido a eletricidade, é outra medida essencial, disse o professor. Além de restringir a emissão dos gases que aquecem o planeta, isso ajudaria na queda da temperatura das cidades.

É preciso também pensar no conforto térmico das construções. “Nossas casas de alvenaria são construídas com tijolos em pé. Eles têm 8 centímetros de largura e conforto térmico zero, assim como as esquadrias de alumínio, que estão na maioria das casas de classe média. Então o custo de energia para manter o ar-condicionado e ventiladores altos é muito alto”, explicou Pereira.

A situação é ainda pior nas camadas mais pobres da população. Basta pensar, por exemplo, que as sub-habitações, muitas delas em área de risco e com baixa qualidade construtiva, representam boa parte das moradias brasileiras.

Uma das principais políticas públicas brasileiras para enfrentar as mudanças climáticas é o Plano Clima, que terá estratégias nacionais de mitigação e adaptação, apontou o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA). O plano começou a ser discutido em 2023. Em nota, o MMA citou também o projeto AdaptaCidades como uma política para enfrentar o problema. Até agora, 21 estados participaram da iniciativa.

Os governos estaduais devem indicar dez municípios com alto índice de risco climático, que receberão apoio técnico para desenvolverem planos locais e regionais de adaptação. O projeto faz parte do Programa Cidades Verdes Resilientes, que tem o objetivo de aumentar a qualidade ambiental e preparar os municípios para lidar com a mudança do clima.