11/08/2024 - 14:09
Alvo de ação julgada pelo STF, tratado de 1980 estaria separando milhares de mães e filhos sem avaliar o contexto das crianças e sendo usado como instrumento para discriminação de gênero.Todos os anos, mais de 2.500 crianças e adolescentes com dupla nacionalidade mundo afora são consideradas vítimas de subtração internacional de menores, prática popularmente chamada de sequestro internacional, quando viajam ou se mudam para o exterior com um dos pais sem a permissão do outro.
Nesses casos, em 103 países signatários é possível recorrer à Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, de 1980, (CH80) para localizar e reaver os filhos mais rapidamente. O tratado, incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 3.413/2000, estabelece procedimentos para assegurar o retorno imediato de crianças e adolescentes menores de 16 anos transferidos ilegalmente para um dos países que assinam o documento ou retidos neles de forma indevida.
Nos últimos anos, porém, tal instrumento tem gerado problemas à medida que cresce o número de mulheres estrangeiras acusadas de “sequestrar” os próprios filhos, mesmo sendo as responsáveis pela guarda das crianças. Estima-se que ao menos 15 mil mães tenham sido denunciadas na última década.
No Brasil, há “196 casos de subtração internacional abertos” no momento, informou o Ministério da Justiça à DW. Em 2021, por exemplo, 80% dos processos envolviam mães.
Em setembro de 2023, três relatorias especiais do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) alertaram sobre a “discriminação de gênero”, apontando que “três quartos dos casos se referem a mulheres”.
Em 2022, uma sentença do Comitê de Direitos da Criança da ONU concluiu que o Artigo 11 da Convenção sobre os Direitos da Criança condena a subtração internacional de menores, mas que exceções devem ser analisadas caso a caso.
No Brasil, o instrumento foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), que solicita ao STF verificar se uma lei ou norma é constitucional, sobre a Convenção da Haia foi protocolada em 2009 e esperou 15 anos para chegar ao plenário.
A dias da continuidade do julgamento marcada para esta quarta-feira (07/08), no entanto, uma nova ADI relâmpago sobre o mesmo tema foi anexada às pressas, adiando a sessão. Ainda não há previsão de retomada.
Ambas as ADIs denunciam que o tratado viola direitos consagrados pela Constituição Federal, separando mães e filhos à força sem avaliar o contexto de cada caso e as exceções previstas na Convenção da Haia.
Paralelamente, sem grande alarde, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, assinou, em 24 de maio, uma portaria com regras inéditas, um dia após a abertura do julgamento da ADI no STF. Pela primeira vez, o governo federal definiu procedimentos claros para a execução da Convenção da Haia, a começar pela admissão dos pedidos de repatriação das crianças a cargo da Autoridade Central da Administração Federal (ACAF) no Ministério da Justiça. Segundo o documento, as novas diretrizes estão em vigor desde 3 de junho.
Em entrevista à DW, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Sérgio Kukina se disse preocupado com a chamada “devolução automática”, que, segundo ele, não “protege os menores de maneira integral”, como guiam a Constituição brasileira e a Convenção da ONU.
O magistrado dedicou a carreira especialmente ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e observa que o texto da Convenção da Haia permite interpretações divergentes sob um imediatismo problemático. “A celeridade deve ser o propósito final, e não o ponto de partida”, defende.
Governo encampa bandeira das mães
Com argumentos atualizados, a nova ADI traz os direitos humanos ao debate e pede ao STF um posicionamento sobre a violência doméstica. A impulsora da ação, deputada federal Professora Luciene Cavalcante (PSOL-SP), disse à DW que há um “impasse de interpretação” na Justiça, com uma linha “conservadora e discriminatória” que “nega a violência contra as mulheres” e viola “outros tratados internacionais que o Brasil também é obrigado a cumprir”, conforme o Artigo 4º da Constituição.
Nesse sentido, o governo brasileiro passou a levantar a bandeira mais reivindicada pela defesa das mães envolvidas em processos de sequestro internacional: a de reconhecer a violência doméstica dentro da exceção para o retorno das crianças. Trata-se do item da Convenção da Haia sobre o “grave risco” de sofrer danos ou uma “situação intolerável” no país de origem.
Até agora, apenas Austrália, México e Colômbia haviam se manifestado sobre o tema – e mesmo assim de forma bastante discreta, a nível interno. O Brasil, abordou o assunto no primeiro fórum oficial sobre violência doméstica e Convenção da Haia, realizado na África do Sul em junho. A próxima edição do evento deve ocorrer no Brasil.
Filho entregue a pai canadense
Embora o procurador-geral da República, Paulo Gonet, tenha defendido no plenário do STF, em 23 de maio, que “a experiência brasileira com a Convenção é proveitosa, tanto na devolução criteriosa de crianças retidas ilicitamente no Brasil, quanto no retorno de crianças retiradas do Brasil e enviadas ao exterior”, não é isso o que mostram os dados fornecidos pelo Brasil à Conferência da Haia de Direito Internacional Privado, para a oitava revisão geral do tratado, concluída em outubro de 2023.
O documento, de responsabilidade da ACAF, relata casos de danos irreparáveis para os menores “devolvidos”, entre outros problemas. Um exemplo se refere ao caso da paulista Carolina Gouveia, que está no Canadá à espera de asilo, vivendo de favor, sem documentos nem direitos, enquanto luta pelo filho Chris desde 2021.
A Justiça brasileira determinou que ali era a “residência habitual” da criança que, segundo a mãe, só havia nascido no país, onde nem os pais tinham visto para morar. Chris foi entregue aos três anos ao pai libanês e à madrasta canadense, que jamais havia visto e cujo idioma não entendia, para morar na província de British Columbia, em 2021.
Gouveia afirma que seguiu o conselho de um defensor público do Canadá que desconhecia a Convenção da Haia tanto quanto ela. Em 2018, com o filho de 4 meses, voltou ao Brasil, onde descobriu que havia violado um tratado internacional.
Em nenhuma instância judicial dos processos, tanto de restituição, no Brasil, como de guarda, no Canadá, foram aceitas as provas de violência que sofria, entre elas, a confissão do próprio genitor de agredi-la quando estava grávida.
A oitava revisão da CH80 reforçou o papel das Autoridades Centrais em tramitar e garantir acesso e visitas às crianças, o que não ocorre no Brasil depois que são enviadas ao país de origem. Atualmente, não há nenhuma garantia ou controle sobre o que sucede com os menores após a restituição, outra das grandes polêmicas do tratado.
A própria ACAF admite que orienta as mães a buscar advogado diretamente no país estrangeiro, alegando que a comunicação com algumas autoridades centrais não flui, às vezes nem mesmo em pedidos de repatriação.
Fuga da Irlanda para a Bélgica
Outro caso impactante é o da carioca Raquel Cantarelli, denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), contou à DW a coordenadora de Assistência Jurídica Internacional da Defensoria Pública da União (DPU), Daniela Brauner. As filhas da carioca foram levadas, aos prantos, pela Polícia Federal, em junho de 2023. O episódio teve grande repercussão na imprensa e se tornou emblemático.
Com base na Convenção da Haia, as irmãs, de 5 e 7 anos, foram entregues ao pai irlandês, após viverem no Brasil por quatro anos com o aval da Justiça brasileira, que reconheceu, em primeira instância, a “situação intolerável” para as meninas na Irlanda.
Cantarelli acusa o ex-marido de abusar sexualmente das filhas e de mantê-las em cárcere privado, inclusive com denúncias registradas. A carioca fugiu com as crianças para a Bélgica, onde conseguiu emitir documentos que as permitiram deixar a Europa rumo ao Rio de Janeiro.
Desde que foram levadas pela PF, a mãe não tem contato com as filhas nem informação sobre elas. A reportagem entrou em contato com a autoridade central irlandesa, mas não obteve resposta. Ir à Irlanda não é uma opção, já que uma ordem de prisão aguarda Cantarelli no país, onde a subtração internacional de menores está criminalizada.
AGU: algoz de mães?
Em entrevista à DW, o procurador nacional de Assuntos Internacionais da União, Boni de Moraes Soares, se mostrou otimista com a nova postura do país para reconhecer o impacto da violência doméstica na realidade da subtração internacional de menores. “Perceber o dilema é um avanço”, refletiu. “Na metade dos casos que passam pela Advocacia-Geral da União (AGU) há alegação de violência”, disse.
As maiores polêmicas sobre a aplicação da CH80 no Brasil envolvem a participação da AGU nos processos judiciais. Nos últimos 20 anos, os advogados do Estado brasileiro atuaram para devolver crianças (ao pai no exterior em pelo menos 80% dos casos) e se converteram em algozes de centenas de mães, como Gouveia e Cantarelli.
De acordo com Soares, a instituição passou por um aprendizado ao longo desses anos e, agora, mobiliza o tema da violência doméstica em articulação com os Ministérios da Justiça, das Relações Exteriores e das Mulheres. Algumas iniciativas já estão em curso, garantiu. Por exemplo: todos os Consulados brasileiros estão orientados a registrar consultas de mulheres que buscam ajuda. “O maior desafio é provar a violência doméstica”, afirmou o procurador.
Nem tudo está mal
Apesar dos problemas, a Convenção da Haia segue sendo um mecanismo importante na segurança de crianças e adolescentes. “Ruim com ela, pior sem ela”, defende Soares.
Brauner concorda. Para a defensora pública federal, nem todas as subtrações são justificáveis. Em 2021, por exemplo, a Defensoria Pública da União (DPU) conseguiu trazer de volta da Alemanha a filha de uma mãe brasileira, com quem havia perdido contato depois que a menina foi morar com o pai no país europeu. Apesar de ter autorizado a viagem, o contato não poderia ter sido interrompido.
Sem saber o paradeiro da filha, a mãe procurou a DPU, que conseguiu revogar a autorização para solicitar o retorno através da Convenção da Haia. Sem o tratado, seria como “procurar agulha no palheiro”, explica Brauner. “Hoje elas estão juntas”, completa.