22/06/2021 - 11:16
Dois jovens encostados um no outro, olhando, sérios, para o longe, como se estivessem esperando por algo. O expressionista alemão Erich Heckel (1883-1970) pintou o quadro “Irmãos” em 1913, pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial, em cores sombrias e suaves, como se fosse um profeta do apocalipse. Agora, a galeria de arte de Karlsruhe enviou a pintura a óleo para os Estados Unidos, onde será exposta no Museu de Belas Artes da Virgínia, em Richmond. Este é o desejo dos herdeiros do historiador judeu Max Fischer, que foi proprietário do quadro até 1934.
A pintura de Heckel foi exibida muitas vezes em exposições de arte internacionais — tanto na Bienal de Veneza (1952) como na documenta 1 em Kassel (1955). A Coleção Fischer era uma das mais importantes coleções privadas alemãs de arte expressionista. O fato de o quadro agora poder ser enviado aos Estados Unidos se deve a uma recomendação da chamada Comissão Limbach, ou seja, Comissão de Peritos para Propriedade Saqueada pelos Nazistas, criada pelo governo federal, estados e associações municipais.
A comissão reconheceu que a obra fora “confiscada em razão de perseguição nazista”. Realmente, os nazistas assediaram Fischer por causa de sua ascendência judaica. Em 1935, ele deixou a Alemanha, um ano depois, emigrou para os EUA.
Estranhamente, em 1967 o quadro estava no porão do próprio Erich Heckel, de modo que ele pôde doá-lo à galeria de arte de Karlsruhe. Mas como é que ele chegou a Heckel, apesar de os nazistas terem tachado as pinturas expressionistas como “degeneradas”? Ele comprou sua pintura de volta? Será que ele se aproveitou da difícil situação da família do colecionador?
Ou ele pagou um preço de mercado justo, como suspeita a galeria de Karlsruhe? Questões cruciais permanecem sem resposta. No entanto, a Comissão Limbach pediu a restituição, justamente porque suspeita que Fischer tenha sido intimidado.
Sistema de compras engenhoso
Embora seja especial, o caso da pintura de Heckel pode ser usado para estudar quão amplo e complexo é ainda hoje o campo da arte saqueada nazista, 88 anos após Hitler ter tomado o poder e 76 anos após a queda do chamado Terceiro Reich. É evidente que entre 1933 e 1945 os nazistas operaram um elaborado sistema de aquisição de arte saqueada. Eles fizeram uso de uma multiplicidade de regulamentos legais, autoridades e até mesmo instituições criadas especificamente para este fim. Os judeus e o outros perseguidos foram as principais vítimas dos saques, tanto no Reich alemão como nos territórios ocupados pelos nazistas.
Não raro, os beneficiários eram os mais altos burocratas nazistas, que montaram coleções valiosas, sobretudo Adolf Hitler, que se via como um amante e patrono da arte. Ao fazer isso, eles se entregaram ao ideal de beleza de uma “arte alemã”. Expressionistas, dadaístas, artistas da Nova Objetividade, Surrealismo ou Cubismo foram classificados como “degenerados”, incluindo as obras de Erich Heckel.
No Acordo das Quatro Potências, assinado em 1945, os principais aliados da Segunda Guerra Mundial consideraram os roubos de obras de arte “crimes contra a humanidade”. Entretanto, só no ano 2000 é que um relatório do historiador americano e pesquisador do Holocausto Jonathan Petropoulos para o Congresso americano mostrou a dimensão dos saques: de acordo com a estimativa de Petropoulos, um total de cerca de 600 mil obras de arte foram roubadas na esfera de influência dos alemães entre 1933 e 1945, um terço só na Alemanha e Áustria.
Bens foram confiscados, os colecionadores de arte judeus foram forçados a vender as obras abaixo do valor, o mais tardar quando forçados a deixar a Alemanha, como no caso de Max Fischer. Muitos dos objetos estão perdidos até hoje: até 10 mil obras de arte ainda estão ocultas em coleções públicas e propriedades privadas no mundo todo, como estima o especialista jurídico de Munique Hannes Hartung.
A Declaração de Washington
Por mais inequívocos que tenham sido os acontecimentos no Terceiro Reich, o manejo da arte saqueada hoje em dia continua problemático. Encontrar “soluções justas e equitativas” para os descendentes e herdeiros dos que foram roubados foi o objetivo de 44 Estados que ratificaram a Declaração de Washington — que não é vinculativa sob o direito internacional — em 1998. Na declaração, a Alemanha se comprometeu a procurar bens culturais apreendidos durante a perseguição nazista e a devolver a seus legítimos proprietários qualquer obra de arte encontrada.
Entretanto, não se pode interpretar daí uma reivindicação individual de devolução acionável na Justiça. Em geral, os especialistas criticam o projeto, como já ficou claro em 2018 em uma conferência internacional na Casa das Culturas de Berlim. O filósofo Gunter Gebauer, da Universidade Livre de Berlim, por exemplo, criticou que a simples expectativa de um compromisso voluntário não basta. Nos primeiros 40 anos de existência da República Federal da Alemanha, disse ele, não se havia pensado em devolver voluntariamente a arte saqueada. “Esperar apenas pelos instintos morais dos proprietários de arte é um pouco ingênuo”, disse Gebauer à emissora Deutschlandfunk Kultur, “acho que precisamos de uma lei”.
Ao contrário da Áustria, ainda não existe tal lei de restituição na Alemanha. Por enquanto, a chamada Comissão Limbach, nomeada em homenagem a sua primeira presidente, a respeitada advogada Jutta Limbach, trata de disputas relativas à restituição da arte saqueada. Mais recentemente, em janeiro de 2021, um valioso violino Guarneri esteve nas manchetes porque a Fundação Franz Hoffmann e Sophie Hagemann ainda não devolveu a suposta propriedade saqueada aos herdeiros do comerciante Felix Hildesheimer, contrariando uma recomendação da Comissão Limbach.
Restituição polêmica
Um espetacular caso recente de restituição envolveu o quadro de Ernst Ludwig Kirchner “Cena de rua em Berlim”, de 1913. O Legislativo da capital alemã mandou restituir o quadro em agosto de 2006, o que provocou uma tempestade de indignação entre a mídia e o público. O caso demonstrou ao mundo inteiro a incerteza jurídica que pode ser desencadeada por princípios moralmente vinculantes, mas legalmente não vinculantes.
O Centro Alemão para Perda de Propriedade Cultural, em Magdeburg, há anos vem oferecendo ajuda no rastreamento da arte saqueada nazista. Por exemplo, com bancos de dados produtivos, incluindo o “Lost Art Register”, acessível ao público, com ampla pesquisa de procedência, como no igualmente sensacional caso Gurlitt, ou também através do networking de pesquisadores.
Um “folheto para museus e instituições públicas” está disponibilizado no site do Centro em Magdeburg, o que, infelizmente, não ajuda muito em uma questão crucial: supõe-se que cada venda de obras de arte após 1933 por uma vítima da ditadura nazista tenha sido ocasionada por perseguição. Isto, no entanto pode ser refutado quando há provas de que o preço de compra foi razoável. Mas o que seria um preço razoável?
Em retrospectiva, dificilmente é possível avaliar isto seriamente devido à falta de dados de mercado, como enfatizou o pesquisador de proveniência Christian Fuhrmeister em uma entrevista ao jornal Handelsblatt. O fator decisivo é se a venda foi realizada sob pressão. Também aqui uma lei alemã de restituição poderia trazer mais clareza.