23/05/2024 - 8:50
Lançada em Cannes em 1984, obra do brasileiro Nelson Pereira dos Santos retrata as agruras do escritor Graciliano Ramos na prisão e já foi elencada como uma das 100 mais importantes do cinema nacional.Há 40 anos, o Brasil brilhou em Cannes com uma obra que retratava os horrores de um governo autoritário. Em 23 de maio de 1984, o filme Memórias do Cárcere, do cineasta brasileiro Nelson Pereira dos Santos (1928-2018), estreou no aclamado festival arrancando aplausos dos quase 3 mil presentes. A obra abriu a Quinzena dos Realizadores daquele ano.
O filme ganharia o prêmio Fipresci (Fédération Internationale de la Presse Cinématographique) da edição. Vinte anos antes, outro trabalho de Santos havia sido bem-recebido em Cannes — Vidas Secas foi laureado com o hoje extinto prêmio OCIC, atribuído pelo Office Catholique International du Cinéma.
Em comum, ambas as obras foram baseadas em livros homônimos do escritor brasileiro Graciliano Ramos (1892-1953). Memórias do Cárcere tem peso de biografia: trata-se do relato do escritor sobre os dez meses em que esteve preso, sem qualquer acusação formal, em Ilha Grande, do sul do Rio — de março de 1936 a janeiro de 1937.
Graciliano Ramos foi levado ao presídio depois que o governo autoritário de Getúlio Vargas (1882-1954), no período caracterizado como Estado Novo, abafou a revolta militar conhecida como Intentona Comunista. Assim como muitos militantes de esquerda, o escritor, que simpatizava com ideias comunistas, foi conduzido à colônia penal, onde sobreviveu a condições precárias e foi vítima de crueldades.
No filme, o escritor é vivido pelo ator Carlos Vereza, com atuação muito elogiada. Durante as filmagens, ele precisou raspar a cabeça, emagrecer 11 quilos e fumar três maços de cigarros por dia — tudo em nome da caracterização perfeita.
Memórias do Cárcere integra lista feita pela Associação Brasileira dos Críticos de Cinema (Abraccine) como um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. E, 40 anos depois, segue atual, conforme especialistas ouvidos pela DW.
Paralelos entre eras
“Um breve paralelo entre a época do filme e o momento atual me parece que demonstra como o filme se mantém relevante”, pontua a pesquisadora Karla Holanda de Araújo, professora do curso de cinema da Universidade Federal Fluminense. Um exemplo que ela dá que a utilização do Hino Nacional Brasileiro, “que havia sido capturado pela ditadura” e aparece no início e no fim do filme, “como se estivesse sendo retomado pelas forças democráticas”.
“Ora, é exatamente o que acontece neste momento no Brasil, em que bolsonaristas se apropriaram das cores da bandeira nacional e o campo democrático tenta recuperá-las. Com isso, eu quero dizer o quanto é importante lembrar da história constantemente e nunca colocá-la debaixo do tapete.”
Araújo defende que o cinema serve como “importante instrumento de manutenção da memória nacional para que a gente não perca de vista a frequente atração de parcela da sociedade pelo fascismo, e como suas estratégias se repetem”.
Nesse sentido há um ir e vir de referências que flertam com o autoritarismo. Naquele finalzinho de período da ditadura militar — que, oficialmente, durou de 1964 a 1985 —, Santos filmou uma história que mostrava as violências impetradas por outro regime criticado pela supressão de liberdades democráticas, o Estado Novo varguista.
“É um filme que ganha cada vez mais importância, porque continua atual e relevante mesmo depois de 40 anos. Ele fala de ditaduras, e quase caímos nessa de novo” comenta o roteirista Lusa Silvestre, que ganhou o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro em 2009 pelo roteiro de Estômago.
Ele ressalta que a obra trata “da resiliência humana, porque durante dez meses Graciliano deu seu jeito de sobreviver lá dentro”, nas “condições sub-humanas da cadeia”. “E é o que nós, brasileiros, mais fazemos: damos um jeito de sobreviver, resistindo.”
Vencedor do Grande Prêmio Brasileiro de 2002 pelo roteiro e pela produção de Bicho de Sete Cabeças, o cineasta Luiz Bolognesi elogia Memórias do Cárcere como um trabalho “de relevância extrema para a cultura” nacional, tanto do ponto de vista do conteúdo como da linguagem.
“Revela um momento sinistro e sombrio da história brasileira, dos anos 1930, e é extremamente atual por conta do fato de que neste momento o mundo está vivendo um novo flerte com a extrema direita e com as atrações que o totalitarismo oferece em momentos de crise”, avalia ele.
Democratização da obra
Bolognesi ressalta que um dos grandes méritos de Nelson Pereira dos Santos foi levar a obra de Graciliano Ramos “a um público mais amplo, que é o público do audiovisual” e revelar “para o país, para todos, a crueldade e a violência do autoritarismo”.
“E, do ponto de vista da linguagem, ele estabelece uma conexão extremamente forte entre duas escolas cinematográficas: o neorrealismo italiano e o cinema novo brasileiro”, acrescenta ele. Santos, aliás, é considerado um dos fundadores dessa estética brasileira, ao lado de Glauber Rocha (1939-1981).
Segundo Araújo, o filme carrega uma “linguagem de rápida identificação do público com a narrativa”.
“Eu acho Nelson Pereira dos Santos do mesmo tamanho que Glauber Rocha, por exemplo”, exalta Silvestre. “Seus temas permanecem atuais até hoje, e vão durar muito tempo.”
O roteirista lembra que o simples fato de o filme ser decorrente da obra de Graciliano Ramos já faz dele algo que “nasceu com grande importância”. “O mais importante para mim é que Nelson pegou um livro, que tem um alcance limitado, e dele fez um filme para muita gente ver. Graciliano Ramos acessível. Carlos Vereza também estava iluminado, o maior papel da vida dele”, comenta.
“O legado do Nelson Pereira foi traduzir o biscoito fino da arte para o grande público, sem perder a consistência”, analisa Bolognesi.
“Nelson é o grande farol do cinema brasileiro e seguirá sendo, por sua erudição, formação humanista e pela capacidade de interpretar o Brasil. Isso não poderá nunca lhe ser retirado”, diz ainda Araújo.
Mulheres
Organizadora dos livros Mulheres de Cinema e Feminino e Plural: Mulheres no Cinema Brasileiro, a pesquisadora Araújo atenta para o fato de que presença feminina no filme de Santos é de “pobre participação”. Mas toma o cuidado para que sua análise não caia no anacronismo — afinal, eram tempos em que a discussão de gênero era incipiente.
Mulheres como a militante comunista Olga Prestes (1908-1942) e a médica psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999) são mais presentes no livro do que no filme. “Mas não quero parecer estar cobrando do filme de 40 anos atrás aspectos que são demandas de hoje”, ressalva. “E, claro, o universo da obra de Graciliano Ramos é mesmo predominantemente masculino, com guardas, carrascos, capitães e diretores de presídio. Mas há passagens no livro em que as mulheres são descritas e observadas de maneira admirável.”