20/08/2024 - 14:37
Tribunal da Alemanha confirma condenação de ex-secretária de campo de concentração, hoje com 99 anos. Para parentes de vítimas e sobreviventes do Holocausto, um sinal de que não há um ponto final para os crimes nazistas.A Justiça da Alemanha confirmou nesta terça-feira (20/08) a condenação de uma antiga secretária de campo de concentração nazista por cumplicidade em assassinato em massa.
A quinta câmara do Tribunal Federal de Justiça, a mais alta corte criminal do país, rejeitou, assim, o recurso apresentado pela ex-secretária Irmgard Furchner, hoje com 99 anos, à condenação dela por um tribunal da cidade de Itzehoe, no norte da Alemanha, em 2022.
Esse tribunal a havia condenado a uma sentença suspensa de dois anos de prisão por cumplicidade em 10.505 casos de assassinato e em cinco casos de tentativa de assassinato. Ela trabalhou como secretária datilógrafa do comandante do campo de concentração de Stutthof, perto da antiga cidade alemã de Danzig (atual Gdansk, na Polônia), de junho de 1943 até abril de 1945, quando tinha entre 18 e 19 anos.
Perante o tribunal, Furchner não admitiu sua culpa pelas mortes. Ela disse apenas que sentia muito pelo que havia acontecido e que se arrependia de ter estado em Stutthof naquela época. A defesa dela colocou em dúvida se a acusada, como jovem datilógrafa, realmente ajudara e fora cúmplice dos atos do comandante do campo de concentração.
A decisão do Tribunal Federal encerra o caso, ou seja, não cabe mais recurso. O caso é considerado um dos últimos julgamentos de crimes cometidos em campos de concentração por um tribunal alemão.
Em busca de justiça
Muitas pessoas se perguntam se faz sentido julgar alguém por crimes cometidos há tanto tempo. No Direito alemão há uma resposta clara para isso: os crimes de assassinato e de cumplicidade em assassinato não prescrevem – uma decisão tomada justamente tendo em vista os crimes cometidos no período nazista.
Além disso, juristas afirmam que um julgamento como o da ex-secretária é importante para a paz jurídica, decorrente da sensação de que a justiça foi finalmente feita. Parentes das vítimas já confirmam isso várias vezes nos tribunais. Eles dizem que não estão interessados em sentenças altas para os criminosos, mas que esses casos sejam finalmente levados a tribunal.
É nessa linha que argumenta o Comitê Internacional de Auschwitz. “Para os sobreviventes dos campos de concentração e extermínio alemães, a decisão judicial [sobre a ex-secretária] não é apenas de grande importância simbólica”, diz o vice-presidente do comitê, Christoph Heubner. “Eles esperam sobretudo que todas as lembranças, observações e testemunhos que eles, como testemunhas sobreviventes e vozes de seus parentes assassinados, deram para o restabelecimento da verdade sejam considerados no julgamento da mais alta corte.”
Diante do pequeno número de criminosos nazistas que chegaram a ser julgados na Alemanha, julgamentos como o atual são de especial importância para que haja um sentimento de justiça entre os parentes das vítimas e sobreviventes, acrescentou Heubner. Tanto mais se for levado em conta que muitos outros criminosos nazistas, também responsáveis pelo aparato da morte dos campos de concentração, nunca estiveram num tribunal alemão. “Em vez disso, puderam desfrutar em paz de suas aposentadorias.”
Os sobreviventes e parentes de vítimas, portanto, esperavam da Justiça alemã por “um sinal inequívoco de justiça para com eles e seus parentes assassinados”.
Também o presidente do Conselho Central dos Judeus na Alemanha, Josef Schuster, afirmou que, para os sobreviventes do Holocausto, é “extremamente importante que se tente uma forma tardia de justiça”. Para ele, o judiciário da Alemanha enviou uma mensagem clara com a sentença desta terça-feira: “Mesmo quase 80 anos após a Shoah, não há um ponto final para os crimes nazistas. Assassinato não prescreve: nem legal nem moralmente”.
Schuster afirma que a sentença está correta. “Não se trata de colocá-la atrás das grades pelo resto da vida. Do que se trata é de que uma criminosa precisa responder por seus atos e encontrar as palavras para o que aconteceu e no que esteve envolvida.” Isso torna ainda mais grave “a falta de admissão de culpa por parte dela”, sintomática da posição da grande maioria dos criminosos nazistas, “que puderam seguir suas vidas sem precisarem temer consequências penais pelos seus crimes atrozes”.
Processo de aceitação da culpa
O psicólogo Wolfgang Hegener disse à agência de notícias KNA que, mesmo 80 anos após o fim do regime nazista, julgamentos como o da ex-secretária são de grande importância para o processo de aceitação de culpa e responsabilidade pela sociedade alemã.
“A culpa, da qual se trata aqui, não prescreve, não pode ser passada adiante e não deve ser relativizada. Isso é de grande importância para uma sociedade na qual há instâncias que ajudam a romper a persistente projeção de culpa e responsabilidade.”
O historiador Jens-Christian Wagner declarou à emissora NDR que esses processos podem ser um impulso para que a sociedade alemã se ocupe mais intensamente da responsabilidade dos “peixes pequenos” na máquina da morte nazista.
“De fato, falar num tribunal sobre o funcionamento de um campo de concentração – eles eram como um relógio com muitas engrenagens pequenas – pode ser útil para a compreensão de que os crimes não foram cometidos apenas por alguns criminosos no topo, mas que isso só funciona se uma grande parte da população participar”, diz Wagner.
A sociedade precisa dar mais atenção aos mecanismos que tornaram os crimes nazistas possíveis, afirma Wagner. “Expressar luto pelas vítimas é fácil se você não se perguntar por que essas pessoas se tornaram vítimas. E isso quase não é feito.” Para ele, os julgamentos tardios de criminosos nazistas podem ajudar a conscientizar as pessoas de que os assassinatos nos campos de concentração eram tornados possíveis pela divisão de trabalho existente.
Também os “peixes pequenos” têm culpa
Os nazistas construíram e operaram um sistema de campos de concentração e extermínio que assassinou milhões de pessoas. Homens, mulheres e crianças foram mortos, a ampla maioria judeus.
Alguns criminosos de primeiro escalão foram julgados, por exemplo nos famosos Julgamentos de Nurembergue. Mas a verdade é que muita gente do alto escalão, assim como os peixes pequenos da máquina da morte nazista, continuaram vivendo sem serem importunados.
Muitos outros conseguiram fugir para outros países. O principal destino era a América do Sul, em especial a Argentina e o Brasil. Entre os que conseguiram escapar para a América do Sul estavam até nomes do primeiro escalão nazista: Josef Mengele, Klaus Barbie, Franz Stangl, Walter Rauff e Adolf Eichmann.
Até o início dos anos 2000, só cerca de 6.700 pessoas haviam sido condenadas por participação nos crimes nazistas. Como comparação: em 1945, o partido nazista tinha cerca de 8 milhões de membros. E mais de 1 milhão de pessoas estavam na SS, a organização paramilitar do partido nazista e principal responsável pela política genocida da Alemanha nazista.
Mas teve um caso que mudou um pouco essa história. Foi o processo contra o ucraniano John Demjanjuk, um antigo guarda do campo de concentração nazista Sobibor, na Polônia ocupada.
Em 2011, ele foi condenado por colaboração no assassinato de dezenas de milhares de judeus nas câmaras de gás.
Antes do veredito para Demjanjuk, a base legal na Alemanha era esta: era necessário provar que um acusado havia cometido um crime específico contra uma vítima específica e que a motivação para esse crime era racial.
Isso tornava tudo muito difícil. Um promotor precisava encontrar testemunhas ou provas para um determinado assassinato. No caso de Demjanjuk, porém, o tribunal o condenou apenas por servir como guarda num campo de concentração – sem provas de participação direta dele num assassinato.
Para o tribunal, para a condenação já bastava ser parte da máquina da morte dos nazistas, por exemplo como guarda, secretária ou contador.
Desde então, tribunais alemães estão dando vereditos com base nessa jurisprudência. Em 2020, um ex-guarda do campo de concentração de Stutthof, então com 93 anos, foi condenado por um tribunal de Hamburgo. A acusação era de cumplicidade no assassinato de mais de 5 mil pessoas.
Em 2016, o ex-guarda do campo de concentração de Auschwitz Reinhold H. foi condenadoa cinco anos de prisão. O aposentado de 94 anos respondia por cumplicidade em 170 mil assassinatos cometidos entre 1943 e 1944, quando era também membro da SS.
Em junho deste ano, um antigo guarda do campo de concentração de Sachsenhausen, Josef S., de 101 anos, foi condenado a cinco anos de prisão por outro tribunal.
A mensagem da Justiça alemã é clara: também os “peixes pequenos” desempenharam uma função no Holocausto e são responsáveis por ele.