Número de filhos por mulher chegou a 1,35 em 2024 – menor patamar em quase duas décadas. Quadro preocupa políticos e economistas, mas não é irremediável, apontam especialistas.Recebido com entusiasmo no mercado editorial alemão, o livro I’m not kidding, da influencer e humorista Julia Brandner, também tem despertado reações muito viscerais. Na obra, lançada no início deste ano, a autora suíça de 30 anos baseada em Berlim explica por que nunca quis ter filhos nem acha que deve desculpas a ninguém por isso. E fala, com franqueza cômica, da sua decisão de se submeter a uma esterilização.

À DW, Brandner exemplifica a reação dos críticos citando um episódio recente em um evento aberto ao público, onde foi rudemente xingada de egoísta diante da plateia por uma senhora de 72 anos e mãe de três filhos.

“[Os críticos] Te taxam de ‘revoltadinha’. Quando você diz que não quer ter filhos, te responsabilizam logo, acusam de sabotar o sistema previdenciário e o contrato geracional, e te culpam pela extinção da humanidade”, afirma.

As críticas a Brandner se baseiam em um número que, para uns, é sinal de progresso na emancipação feminina e, para outros, de decadência econômica da Alemanha à medida em que a população segue encolhendo: 1,35. Essa é a média de filhos por mulher na Alemanha, segundo dados de 2024 do Escritório Federal de Estatísticas. Entre alemãs, esse número é ainda menor, de 1,23; entre estrangeiras, de 1,84.

Em 2024, nasceram 677.117 crianças na Alemanha – 15 mil a menos que no ano anterior.

AfD explora o tema

Julia Brandner tinha 28 anos quando foi esterilizada. Para fazer o procedimento, teve que apresentar à ginecologista um atestado de sanidade assinado por um psiquiatra. Ela diz ter se surpreendido que o livro tenha gerado um debate tão acalorado.

Brandner afirma observar uma guinada crescente à direita em tempos de instabilidade, com um retorno a valores mais tradicionais, que preconizam que as mulheres deveriam voltar a cuidar exclusivamente da casa e dos filhos.

Não à toa, a queda nas taxas de natalidade está na agenda do partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD), que quer resolver o problema da falta de trabalhadores especializados no país com mais nascimentos em vez de imigração.

Mas Brandner critica que, ainda hoje, o tema filhos continua a recair quase inteiramente sobre a mulher. “Justamente as muitas mães solo são deixadas sozinhas, enquanto os pais são pouco cobrados”, afirma.

Ela também aponta para o fato de que, na Alemanha, ter filhos costuma significar trabalhar menos para poder cuidar das crianças, ter menos renda e possivelmente depender de terceiros para sobreviver, além de uma aposentadoria insuficiente no futuro – apesar de a sociedade como um todo depender, no modelo atual, dos impostos pagos pelas novas gerações.

“Ter filhos representa um enorme risco de pobreza para as mulheres. Não é possível que, ainda hoje, uma mulher tenha que sacrificar seu próprio bem-estar para garantir o bem-estar da sociedade.”

Por que as mulheres estão tendo menos filhos

A Alemanha não é o único país a lidar com a queda na taxa de fecundidade. Os números têm caído drasticamente no mundo inteiro, com exceção da região do Sahel, na África, onde as mulheres ainda têm, em média, mais de cinco filhos. No outro extremo desta estatística está a Coreia do Sul, com 0,75. No Brasil, a taxa era de 1,55, segundo o Censo de 2022.

A socióloga Michaela Kreyenfeld, que ajudou a produzir um relatório sobre o tema para o governo federal alemão, vê uma relação cada vez maior entre múltiplas crises e a taxa de fecundidade.

“Mulheres não querem ter filhos por egoísmo ou por escolha? Estamos discutindo isso pelo menos desde os anos 1970, não é algo novo”, afirma. A novidade, pontua, são as crises múltiplas: “A pandemia de covid-19, a rápida mudança climática, a inflação alta”, elenca. “Isso é uma situação nova principalmente para os jovens.”

A resposta da direita conservadora

Nos EUA há um movimento em resposta à queda de fecundidade, apoiado pelas pessoas mais ricas do mundo: o pronatalismo, do qual o bilionário Elon Musk é garoto-propaganda. O objetivo de seus defensores: pôr tantas crianças no mundo quanto for possível para salvar a humanidade de um suposto “colapso”.

Outro vocal defensor da ideia é o presidente russo Vladimir Putin – que ameaça quem fizer “propaganda” encorajando a não procriação com multas que podem passar de 4 mil dólares. Mas o Kremlin não está muito interessado no bem-estar das crianças nem dos pais, muito menos das mães, argumenta Kreyenfeld: em algumas partes do país, há relatos de que o governo paga para que adolescentes tenham filhos.

Aumentar as taxas de natalidade na marra pode ser uma má ideia, pondera a socióloga, citando o exemplo da Romênia: “O presidente Ceausescu [que governou o país de 1974 a 1989], na época, impulsionou drasticamente a taxa de natalidade de 1,8 para 4 em apenas um ano, ao restringir o acesso a métodos contraceptivos e impor punições draconianas ao aborto. O resultado foi a chamada ‘Geração Perdida’: ou seja, uma geração cujos pais não cuidaram dos filhos porque, na verdade, não os queriam.”

A taxa de fertilidade não reflete a quantidade de filhos que mulheres gostariam de ter

Como, então, convencer as pessoas a terem mais filhos? Especialista no tema, o diretor interino do Instituto Federal para Pesquisa Demográfica (BiB) Martin Bujard diz que a discussão sobre mulheres como Julia Brandner, que optam por não ter filhos, foge do verdadeiro foco.

“Se alguém não quer ter filhos, é uma decisão livre. Isso não deveria ser estigmatizado. A vida sem filhos é cada vez mais aceita”, afirma. O ponto, argumenta, é outro: “Nós perguntamos às pessoas sobre se e quantas crianças gostariam de ter. E aí vemos que esse desejo em 2024 era de em média 1,8 crianças para cada mulher e cada homem – quer dizer, claramente acima da taxa de fecundidade de 1,35. Se esse desejo, que existe, se realizasse, teríamos problemas demográficos menores e, a longo prazo, muito mais prosperidade econômica.”

A esse fenômeno descrito por Bujard dá-se o nome de “gap da fertilidade” – ou seja, a diferença entre o número médio de filhos desejados e a real taxa de fecundidade.

Na vida real, há mulheres que têm menos filhos do que gostariam, ou que adiam esse desejo – seja porque não encontraram alguém com quem formar família, por falta de rede de apoio, razões profissionais ou econômicas. E também porque, na Alemanha, crianças ainda são socialmente mais frequentemente vistas como um problema do que como algo que enriquece a vida, e a política poderia fazer mais para incentivar as pessoas a terem mais filhos.

Alemanha precisa tornar a vida familiar mais compatível com a vida profissional

Bujard, do BiB, elogia os esforços da política alemã no passado para ajudar os alemães a terem mais filhos, como a expansão dos jardins de infância e escolas em tempo integral, bem como a introdução de benefícios sociais específicos para pais. Foi uma mudança de paradigma que ganhou atenção internacional, após a Alemanha figurar por décadas entre os países com a menor taxa de fecundidade.

Mas Bujard também vê problemas: “Desde 2013 há o direito legal a creches, mas ele não é mais tão confiável, pois frequentemente falta pessoal. Há uma escassez de profissionais nessa área, e, no fim das contas, entra pouco dinheiro no sistema. Se houvesse recursos suficientes, poderíamos também falar sobre salários mais altos para educadores e educadoras.”

Mais mulheres e homens entre 30 e 50 anos sem crianças

A Alemanha precisa se esforçar mais em suas políticas de apoio familiar, já que 22% das mulheres e 36% dos homens com idade entre 30 e 50 anos hoje não têm filhos, segundo o Ministério da Família, dos Idosos, das Mulheres e da Juventude. E a média de filhos entre homens na Alemanha foi de 1,24 em 2024, segundo dados oficiais – ou seja, ainda menor que entre as mulheres.

Principalmente jovens mulheres com ensino superior estão deixando de ter filhos. Por isso, Bujard aponta que o único caminho para reverter esse cenário é melhorar a compatibilidade da vida profissional com a vida familiar.

“O pior cenário é que, com a queda contínua da fecundidade, nós teremos problemas de longo prazo com a seguridade social ainda mais graves em 2030. Isso custaria muito bem-estar econômico: as contribuições para a previdência teriam que ser aumentadas, as aposentadorias encolheriam, novos cortes teriam que ser feitos no sistema de saúde.”

Colaborou Rayanne Azevedo.