Nos 60 anos do golpe, especialistas analisam as iniciativas para estabelecer a memória e a responsabilização das atrocidades do regime militar e o apoio que ele ainda encontra na sociedade.A maneira difusa com que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem lidado com o aniversário de 60 anos do golpe de 1964 jogou luz para um aspecto mais amplo na relação que o Estado brasileiro mantém com a ditadura que durou oficialmente até 1985. Lula determinou que o governo não faria celebrações específicas para relembrar o golpe, mas o PT participou de atos em memória da data no domingo (31/03).

Analistas consultados pela DW argumentam que a estratégia repete um modus operandi comum ao longo da redemocratização brasileira, com a omissão do Estado em investigar e julgar de maneira sistemática os atos praticados pelos militares durante o regime de exceção. Além disso, repete o erro de não adotar estratégias para alimentar o debate em torno do que foi o período.

“Até a instalação da Comissão Nacional da Verdade, em 2012, as iniciativas sobre o esclarecimento de crimes de lesa humanidade e graves violações contra os direitos humanos foram da sociedade civil e de grupos de ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos”, argumenta Marcos Napolitano, professor de história do brasil na Universidade de São Paulo (USP).

Ele explica que muitos nomes de torturadores são conhecidos desde o fim dos anos 70, e que o primeiro grande relatório público sobre esse tema foi o livro Brasil, Nunca Mais, da Comissão de Justiça e Paz, publicado em 1985. Ainda assim, os esforços de identificação e punição dos agentes da repressão ficou restrito por um bom tempo entre a sociedade civil.

“Além de investigarem por conta própria e reunirem documentação e testemunho sobre essas violações, esses grupos de pessoas atingidas também fizeram um longo processo de reivindicação perante o Estado brasileiro para que houvesse respostas para essas violações graves”, ressalta Carla Osmo, professora de direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Os movimentos de pressão civil começaram a surtir algum efeito na década de 90, com o surgimento de Comissões Especiais no Congresso Nacional para debater as mortes ocorridas na ditadura, no âmbito da lei 9.140/1995, denominada Lei dos Desaparecidos Políticos do Brasil. “Essa legislação reconhece não só a responsabilidade do Estado nas mortes e desaparecimentos, como também estimula a condução de buscas e análises necessários para identificação de pessoas desaparecidas”, afirma Osmo.

A docente da Unifesp argumenta que a produção de provas no âmbito das comissões foi decisiva para basear a única decisão judicial que reconhece um agente da ditadura como autor de violações graves de direitos humanos, em um processo movido pela família Almeida Telles contra o coronel Carlos Brilhante Ustra, em decisão de 2008. Na década de 1970, Amelinha Telles foi torturada por Ustra nas dependências do DOI-Codi de São Paulo.

Outro processo contra Ustra foi movido pela família Merlino em 2010, após a tortura e morte do jornalista Luiz Eduardo Merlino, também na década de 1970, no mesmo DOI-Codi. Ustra foi condenado a pagar indenização na primeira instância, mas a decisão foi revertida pelo Tribunal de Justiça e, no fim do ano passado, seguida pelo Superior Tribunal de Justiça. A família Merlino entrou com recursos.

Osmo argumenta que a falta de punições para militares investigados por crimes na ditadura já foi alvo de sanções para Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos, nos casos envolvendo Gomes Lund e os membros da Guerrilha do Araguaia e na morte do jornalista Vladmir Herzog. “Muitas vezes há acusação do Ministério Público, mas os processos criminais contra os agentes não avançam no Judiciário, contrariando inclusive as convenções internacionais de direitos humanos.”

A memória em disputa

Promulgada em 1979, ainda durante a ditadura, a Lei de Anistia perdoou os crimes cometidos entre 1969 e 1979. Sua revisão é uma demanda antiga de parte da sociedade civil, algo que nunca aconteceu. No fim de fevereiro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, afirmou que pretende retomar esse debate no segundo semestre do ano.

A base para o pedido de revisão da lei é a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 320, apresentada em 2014 ao STF pelo PSOL, que estava sob relatoria do ministro Luiz Fux. Toffoli assumiu a relatoria em fevereiro de 2021. Ela pede que a anistia concedida para agentes públicos, militares ou civis envolvidos em crimes na ditadura seja anulada, sob o argumento de que cometeram “graves violações de direitos humanos” contra cidadãos e cidadãs que eram acusadas de prática de crime político durante a ditadura.

O modo como a Lei da Anistia entrou em vigor está relacionada ao esquecimento proposto pelo Estado brasileiro em relação aos crimes cometidos na ditadura, argumenta Napolitano.

“A partir do final dos anos 70, a sociedade civil brasileira elaborou uma memória crítica à ditadura que se tornou hegemônica na imprensa, no sistema escolar, no sistema cultural e artístico mais sofisticado, entre os movimentos sindicais e sociais. Neste momento, inclusive várias vozes liberais que apoiaram o golpe de 1964 passaram a condenar a ditadura, mas, ao mesmo tempo, defender um “esquecimento” das violências cometidas pelos governos militares em nome de uma “pacificação nacional”. Ou seja, mais ou menos, chancelaram os termos da Lei de Anistia de 1979.”

Ele ressalta que as condições políticas da transição política brasileira, tutelada pelos militares que ainda estavam no poder, dificultou a implementação de ações para contrapor o discurso de apaziguamento contra os militares. “Além disso, nos anos 80, mesmo lideranças e movimentos sociais progressistas e democráticos, contrários à ditadura, nunca deram prioridade ao tema no processo de transição política ou mesmo na Constituinte. O foco era se livrar das leis autoritárias e garantir direitos sociais. A memória hegemônica, liberal, isolou tanto as vozes da extrema direita nostálgicas da ditadura, quanto os movimentos de direitos humanos que defendiam uma política de memória e verdade.”

“Mas esse recalque deixou aquele passado cheio de cicatrizes mal curadas que explodiram a partir de 2014-2015, agravado pelo fato que a ditadura se transformou em referência para os setores autoritários atuais sob o guarda-chuva do bolsonarismo. Confesso que sou muito pessimista em relação às iniciativas do Estado brasileiro na direção de uma política de memória e de uma punição jurídica efetiva aos perpetradores, pois nem quando os setores progressistas eram fortes na sociedade, isso ocorreu”, complementou Napolitano.

Osmo, da Unifesp, diz que as elites brasileiras defenderam a superação do passado por meio de uma simples virada de página, sem um trabalho de investigação, reconhecimento e responsabilização por essas violações. “Não é possível construir uma democracia de fato sem que haja uma revisão dessas violações”, analisa

Para Pedro Campos, professor de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, o Brasil não se preocupou em, por exemplo, criar museus e espaços públicos para contextualizar o que foi a ditadura militar. No Chile, por exemplo, há o Museu da Memória e dos Direitos Humanos. Na Argentina há o Museu de Esma, antigo centro de tortura que virou Patrimônio Mundial no ano passado em título concedido pela Unesco. No país todo existe apenas um centro de memória dedicado ao tema, o Memorial da Resistência, na cidade de São Paulo.

Os limites da CNV

Criada em 2011 e instituída no ano seguinte, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi a tentativa para apurar os crimes cometidos durante a ditadura militar e, de alguma forma, mostrar a sociedade os horrores do período.

Osmo ressalta que uma das contribuições da CNV foi a demonstração do caráter sistemático das violações graves de direitos humanos praticadas durante a ditadura. Ou seja: de que a tortura praticada, as execuções extrajudiciais, os desaparecimentos forçados não se tratava de escolhas individuais. “Mas sim se tratava de uma política de Estado organizada pela cúpula do governo militar, e isso é bastante importante pra caracterização é do crime contra a humanidade segundo o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional do qual o Brasil é signatário.”

Até meados de 2014, a documentação produzida pela Comissão, em paralelo com a sociedade civil, mostrou a violência de gênero e a participação de empresas privadas não só no suporte ao golpe militar, mas também em atos de tortura durante o regime. O relatório final da comissão, que também pediu a revisão da Lei de Anistia, apontou 377 pessoas como responsáveis por assassinatos e torturas, além de listar 210 desaparecidos e 191 mortos no período.

“A CNV gerou informações valiosas. Mas houve uma forte reação das Forças Armadas, que mantêm um poder de veto sobre o aprofundamento das investigações. A situação se agravou quando toda uma memória sectária de extrema direita, de apoio explícito à ditadura, começou a disputar o espaço público. Em síntese, a ausência de uma pedagogia da memória como política pública e educacional acabou permitindo o crescimento de uma memória autoritária adormecida”, diz Napolitano.

Para Osmo, o caráter limitado da comissão, ainda que com avanços significativos, era algo esperado, dado que sua existência, para além dos entraves políticos, tinha prazo determinado. “A própria CNV, inclusive, recomendou a criação de um órgão específico para dar continuidade aos trabalhos e também o fortalecimento da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos políticos. Mas o que nós vimos recentemente foi a sua extinção”. O colegiado foi extinto no fim de 2022 no governo Bolsonaro, mas há pressão da sociedade civil para que seja retomado pela gestão petista.

Críticas a Lula

Enquanto o PT defende a participação do partido em manifestações que relembrem o golpe de 1964, até como forma de aproximação com o ato golpista de 8 de janeiro, Lula tem preferido adotar um tom apaziguador com as Forças Armadas. Em meio às investigações da Polícia Federal que apuram a participação de militares de alta patente na tentativa na intentona golpista da Praça dos Três Poderes, o presidente tem feito movimentos de aproximação com a caserna.

Na quarta-feira, durante um evento no Rio de Janeiro, ele afirmou que tem “carinho” pelas Forças Armadas e defendeu que elas sejam “altamente qualificadas como forma de garantir a paz”. A decisão do presidente de evitar manifestações no 31 de março para diminuir a tensão com os militares é vista com temor entre os especialistas.

“A decisão de não autorizar que os ministérios façam atos de repúdio ao golpe é uma escolha muito ruim e prejudicial à sociedade brasileira, porque contribui para que persistam atos negacionistas de elogios à ditadura e favorece que as violações graves não sejam vistas como algo que merecem repúdio”, comenta Osmo. “Relembrar o golpe não é remoer o passado, mas contribuir para o fortalecimento da democracia no presente e no futuro. Pensarmos o tipo de Estado que nós queremos.”

“É uma frustração muito grande e retrocesso imenso o atual governo não promover qualquer forma de manifestação de repúdio em relação à ditadura. O governo deveria resgatar as recomendações propostas ao final do relatório da CNV, de modo a produzir uma política de avanço em relação à pauta de memória, verdade e justiça em relação aos crimes que foram cometidos durante o período da ditadura”, finaliza Pedro Campos.