Ensaio de 1975 da pensadora Hélène Cixous inspirou gerações de feministas e permanece essencial para toda autora aspirante. Suas repercussões abarcam desde os protestos das iranianas aos direitos queer.O apelo de Hélène Cixous é eloquente: “É preciso que a mulher se escreva”. Embora algumas das referências pós-estruturalistas e teóricas em O riso da Medusa possam parecer difíceis para leitores não versados, o ensaio da feminista francesa de 1975 é cheio de citações impactantes, potencializadoras, permanecendo uma leitura essencial. Sobretudo para qualquer jovem que aspire tornar-se autora.

“Escreve, que ninguém te retenha, que nada te faça parar: nem homem, nem imbecil máquina capitalista, em que as casas editoras são as espertas e obsequiosas retransmissoras dos imperativos de uma economia que trabalha contra nós e pelas nossas costas; e nem tu mesma.”

Nascida de pais judeus em 5 de junho de 1937 em Oran, na Argélia Francesa, Hélène Cixous ficou conhecida por seu estilo de escrita experimental, cobrindo diversos gêneros: teatro, teoria literária e feminista, crítica de arte, autobiografia e ficção poética.

Em 1974, estabeleceu o primeiro Centro de Estudos Femininos na Universidade Paris 8, uma instituição pública e experimental que ela também fundou como reação direta às revoltas estudantis de maio de 1968 na França.

De lá para cá, Cixous é autora de mais de 70 publicações, entre ensaios, romances e peças de teatro, sendo considerada uma forte concorrente ao Prêmio Nobel da Literatura.

Masturbação masculina x escrita feminina

Embora o panorama literário tenha se desenvolvido consideravelmente desde a década de 70, com mais autoras sendo publicadas e conquistando reconhecimento, O riso da Medusa é um importante lembrete de que, ao longo de milênios, a herança cultural ocidental tem sido definida pela perspectiva masculina.

Cixous argumenta que o aviltamento da mulher parte de sua “colonização” pelo pensamento “falogocêntrico”. Aqui ela parte de ideias propostas pelo flósofo Jacques Derrida (1930-2004), também franco-argelino. Combinando os radicais gregos para “pênis” e “palavra”, ele criou o termo “falogocentrismo” para designar a ênfase dada ao ponto de vista masculino através da linguagem.

Embora rejeite as narrativas patriarcais da cultura ocidental, o ensaio de Cixous é pleno de suculentas referências fálicas, como: “[…] o gesto da escritura é o equivalente de uma masculina masturbação (e portanto a mulher que escreve, corta para si um pênis de papel)”.

Segundo a autora feminista, há uma conexão direta entre libertar a escrita de mulheres e a liberação de sua sexualidade pessoal, uma vez que, por um tempo demasiado longo, tanto masturbar-se quanto uma mulher escrever estavam associados a vergonha, algo para só se fazer em segredo e acompanhado por sentimento de culpa.

Medusa iraniana, Medusa queer

Em seu ensaio de 1975, Cixous refere-se à personagem mitológica da Medusa, monstro com cabeleira de serpentes cujo olhar petrificava os homens. Segundo a pensadora, a narrativa masculina desse mito grego de sedução e poder o transforma num símbolo de ameaça e castração: a Medusa representa o medo deles em relação ao desejo feminino.

“Meu texto foi uma atualização da mitologia grega. Não há exemplo melhor para descrever a posição das mulheres e a batalha assassina dos homens contra elas. A Medusa era uma das três Górgonas [poderosos demônios alados], as filhas de Fórcis e Ceto, e a única mortal entre as três. Os homens a temiam, quando olhavam para ela se transformavam em pedra.”

“Mas por que ela tinha tamanho poder sobre os homens? Porque os via – eles não tinham tempo para vê-la. Os homens não querem ver as mulheres e querem cobri-las de véus, para que se tornem invisíveis, como fantasmas”, explicava Cixous em dezembro de 2022, numa entrevista à DW centrada nos protestos femininos do Irã.

“Contudo mulheres não são objetos, não são bonecas veladas. Elas são radiantes, são belas. Minha Medusa viajou o mundo. Neste momento ela está, obviamente, no Irã.”

De início a autora octogenária hesitou em pronunciar-se sobre as iranianas em luta por seus direitos: “Claro, eu me pergunto se legitimamente posso comentar a respeito. Afinal, não estou no Irã, nem arriscando a minha vida como a gente de lá.”

Mas suas colegas feministas a encorajaram: “Minhas amigas iranianas me diziam: ‘Por que você não faz alguma coisa? Fale! Se falar, a gente local vai escutar.’ Para mim é importante dizer: eu escutei vocês.”

Neste ínterim, a Medusa tem sido adotada em grande escala por feministas e pelo movimento contra abuso sexual #MeToo, como um símbolo de raiva e protetora dos segredos femininos.

Hélène Cixous revisou seu Le rire de la Méduse para reedição em 2010, com novo prefácio, explorando a ideia da Medusa como um corpo queer – mais um motivo por que o ensaio segue sendo amplamente citado até hoje.

“Basta que se olhe a Medusa de frente para vê-la”, exorta a feminista franco-argelina. “E ela! não é mortal. Ela é bela e ela ri.”