Quase um terço do comércio exterior da China é feito em yuan em vez de dólar. Pequim segue rígida estratégia para internacionalizar moeda, e também está de olho na dívida externa de países no Sul Global.O empenho da China em reduzir a dependência do dólar americano se consolidou durante a crise financeira global de 2008/2009. O Banco Popular da China (BPC), autoridade monetária do país, estava alarmado com a impressão agressiva de dinheiro pelo Banco Central americano, o Federal Reserve, o que ameaçava o valor de seus ativos estrangeiros, então avaliados em 1,9 trilhão de dólares (R$ 10,1 trilhões).

A resposta de Pequim veio com o lançamento, em julho de 2009, de um projeto piloto para liquidar o comércio exterior em yuan, ou renminbi, pela primeira vez. Foi o pontapé de uma campanha que, 16 anos depois, faria do yuan a moeda usada em 30% dos 6,2 trilhões de dólares (R$ 33 trilhões) em comércio global de bens da China, segundo o vice-governador do BPC, Zhu Hexin.

Se consideradas todas as transações internacionais com a China, inclusive compras de títulos e investimentos estrangeiros, a participação do yuan salta para 53%, superando pela primeira vez o comércio em dólar do país em 2023.

Em outro marco importante, o yuan superou brevemente o euro em 2024 como a segunda moeda mais usada no financiamento do comércio global, embora com apenas 5,8% do mercado, contra 82% do dólar, segundo a Swift, a rede global de mensagens usada pelos bancos para liquidar pagamentos internacionais.

A participação do yuan nas reservas cambiais globais também foi recorde no segundo trimestre do ano, chegando a 2,4%, informou o Fundo Monetário Internacional (FMI) em outubro.

A estratégia chinesa com o yuan

Enquanto os países do Brics no Sul Global exploram alternativas ao dólar, inclusive propostas para uma moeda compartilhada, a China tem adotado uma abordagem mais pragmática, ampliando gradualmente o papel do yuan no comércio global, ao mesmo tempo em que mantém controles deliberados sobre o câmbio.

“A China quer que o yuan se internacionalize para o comércio, para a economia real”, afirma Miguel Otero-Iglesias, pesquisador sênior do Instituto Real Elcano, na Espanha. “Ela está menos interessada em fazer do yuan uma moeda financeira.”

Como ele explica, se Pequim permitisse o uso do yuan nos mercados financeiros globais para fluxos de capital, investimentos e instrumentos financeiros, além do comércio, isso reduziria o controle do Partido Comunista Chinês sobre o sistema de crédito doméstico.

“Pequim acredita que as finanças devem ser escravas da economia real, e não senhoras”, ressalta.

As manchetes na imprensa frequentemente mostram a alta recente do yuan como um desafio direto à dominância do dólar, que há quase 80 anos é a moeda de reserva global e ainda é usada em mais de 58% das transações internacionais e reservas cambiais.

Mas para Dan Wang, diretora da China na consultoria de risco político Eurasia Group, o que Pequim busca não é a desdolarização, e sim a regionalização do yuan em direção ao Sul Global.

Nos últimos três anos, a China tem aproveitado seu vasto poder econômico e os desdobramentos geopolíticos da guerra na Ucrânia para garantir acordos favoráveis de energia e commodities – incluindo grandes descontos da Rússia –, com uma parcela crescente paga em yuan.

“Com o tempo, especialmente quando a China tem poder de negociação, ela pode exigir uma proporção maior [de comércio em yuan]. É isso que as estatais chinesas já estão fazendo com fornecedores estrangeiros de commodities”, observa Wang.

A importância do yuan no crédito externo

Um segundo pilar dos esforços de Pequim para impulsionar o uso do yuan é o crédito externo, que incorpora a moeda chinesa nas estruturas de dívida de países em desenvolvimento.

As participações externas dos bancos chineses em yuan – empréstimos, depósitos e títulos – quadruplicaram para 480 bilhões de dólares em cinco anos (R$ 2,5 trilhões), segundo o Financial Times, representando uma fatia crescente dos cerca de 1 trilhão de dólares (R$ 5,33 trilhões) em crédito externo da China por meio da Nova Rota da Seda.

Com as taxas de juros do yuan entre 200 e 300 pontos-base abaixo das do dólar, o FT aponta que Quênia, Angola e Etiópia converteram dívidas antigas em dólar para yuan este ano, enquanto Indonésia, Eslovênia e Cazaquistão estão agora emitindo títulos na moeda chinesa.

Alternativa ao Swift e yuan digital

Além do comércio e do crédito, Pequim construiu uma terceira linha de defesa: uma arquitetura financeira separada que pode operar independentemente dos sistemas dominados pelo dólar. No centro dela está o Sistema de Pagamentos Interbancários Transfronteiriços da China (CIPS), alternativa ao Swift para transações internacionais.

Em centros financeiros importantes como Singapura, Londres e Frankfurt, foram abertos centros de compensação em yuan. O banco central chinês também está testando o yuan digital – que, com acesso expandido para mais de 20 países, deve agilizar ainda mais os pagamentos internacionais e reduzir a dependência de bancos ocidentais.

“Esse pode ser outro canal pelo qual a China internacionaliza sua moeda, sendo pioneira na vanguarda do dinheiro soberano digital”, diz Otero-Iglesias.

A China também assinou acordos de swap cambial com mais de 50 países. Eles permitem que bancos centrais troquem suas moedas locais por yuan sob demanda, o que ajuda países como Rússia e Irã a lidar com sanções dos EUA que bloqueiam o acesso ao dólar. Os acordos também beneficiam países que dependem do comércio e investimento chineses, como Argentina, Paquistão e Turquia.

Pequim deve manter controle rígido sobre o yuan

Diferentemente de moedas ocidentais, o yuan segue sendo rigidamente administrado por Pequim, e não pode ser trocado livremente por outras moedas sem supervisão do governo.

O sistema de crédito doméstico chinês ainda é em boa parte dirigido por bancos estatais sob controle político. Pequim sabe que permitir o livre entra e sai de dinheiro no país poderia expor a moeda a ataques especulativos e outros tipos de influência estrangeira. Por isso, a convertibilidade absoluta ainda está fora de cogitação.

“Pequim não vai adotar uma abordagem liberal”, afirma Otero-Iglesias. “A internacionalização do yuan vai seguir a lógica de comando e controle do Partido Comunista Chinês.”

Mas sem a convertibilidade absoluta, é improvável que o yuan vire uma moeda financeira dominante usada para investimentos e reservas globais. A estratégia cautelosa de Pequim pode limitar o alcance do yuan.

O movimento para expandir o comércio em yuan também sofre com os desequilíbrios econômicos da própria China. O consumo interno está enfraquecido, consumidores e empresários gastam menos – em parte por causa de um colapso no mercado imobiliário.

Fábricas chinesas estão produzindo mais do que o país necessita, o que deixa a economia mais dependente de exportações. Sem demanda estrangeira forte – resultado da guerra tarifária deflagrada por Donald Trump nos Estados Unidos –, a expansão do comércio em yuan pode estagnar.

“O crescimento tem que vir de fora”, afirma Wang. “Isso quer dizer que o comércio global se torna ainda mais importante agora para a China.”

Se Pequim passar a exigir que mais negócios sejam fechados usando o yuan, o sucesso dessa estratégia vai depender dos parceiros comerciais – e, segundo analistas, de mais confiança, instituições transparentes e uma economia mais robusta.