22/07/2023 - 7:53
A colonização europeia que deu origem ao Brasil dizimou uma infinidade de povos e culturas. Os indígenas contemporâneos, sobreviventes de cinco séculos de violências e processos de apagamento cultural, não só lutam para a demarcação de seus territórios e as ferramentas de proteção de um Estado do qual eles também fazem parte; mas também recordam essa diversidade de saberes e tradições que, embora menor, ainda existe.
“Da mesma forma que Europa não é uma coisa só, nós também somos de muitos povos”, comenta o músico, escritor e cineasta Cristino Wapichana, um dos autores do recém-lançado livro Cada remada uma história, que aborda justamente as diferenças culturais entre quatro povos originários.
Esse “achatamento” semântico a que os indígenas foram – e continuam sendo – submetidos é mais uma violência histórica que distorce a importância das civilizações prévias ao colonialismo europeu nas Américas.
“As universidades têm uma boa parte dessa culpa por não obrigarem seus professores a atualizarem seu repertório com as demandas contemporâneas. Isso vale para todas elas indistintamente, de modo que não conseguem formar os novos profissionais dentro de uma nova linguagem e com capacidade mínima de avaliar as informações que lhes chega. A consequência disso, especialmente em tempos de novas mídias sociais, é a repetição de estereótipos e imagens equivocadas a respeito de nossos povos”, analisa o escritor Daniel Munduruku, também coautor de Cada remada uma história.
Estudos contemporâneos estimam que, naquele mês de abril de 1500, quando a frota comandada por Pedro Álvares Cabral aportou no território hoje brasileiro, viviam por aqui cerca de 3,5 milhões de pessoas.
E há hipóteses de que seriam muito mais. “Até 10 milhões de indígenas”, comenta Dinaman Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “Mas o mais importante é que sempre estivemos e estamos aqui.”
A configuração estava muito longe de ser homogênea: eram mais de mil povos, muitos deles sem qualquer contato uns com os outros, falando línguas diferentes, praticando rituais diferentes, seguindo tradições diferentes e trabalhando de forma diferente.
“Nós lidamos de forma muito tranquila [com as diferenças]”, diz Tuxá. “Somos povos diferentes, mas nos respeitamos. Temos pontos em comum como, por exemplo, a luta pelos territórios demarcados, enfrentamento das mudanças climáticas e a luta pela saúde e pela educação específica e diferenciada, mas sempre respeitando as especificidades de cada povo.”
Diversidade
Ex-coordenador da Apib, o pedagogo Alberto Terena ressalta que parte dessa diversidade resistiu ao tempo e precisa ser valorizada. “Cada povo tem sua particularidade e sua forma de vida”, comenta, acrescentando que até a diversidade climática do território brasileiro interferiu na maneira como cada etnia passou a lidar com a vida, “porque as necessidades do povo da Caatinga eram e são diferentes das necessidades do povo amazônico, por exemplo”.
Os indígenas Terena, seu povo, vivem no atual Mato Grosso do Sul, falam uma língua chamada aruák e, conforme conta ele, tradicionalmente se dedicam à agricultura familiar. “Nos acostumamos a trabalhar com banana, feijão de corda, mandioca…”, enumera. Calcula-se que sejam cerca de 16 mil os terena atualmente.
Daniel Munduruku é do povo Munduruku — tradicionalmente os indígenas transformam em sobrenome a terminologia referente à sua nação. “Munduruku significa formigas guerreiras e estamos localizados em três estados brasileiros: Amazonas, Pará e Mato Grosso”, explica o escritor. São cerca de 15 mil.
“O contato de meu povo com a sociedade brasileira se dá desde o século 18″, acrescenta. De lá para cá, aprendemos a lidar com a sociedade brasileira de forma criativa permanente. Muitas coisas mudaram para nossa gente, mas isso fortaleceu ainda mais nosso pertencimento à cultura ancestral.”
Munduruku ressalta que “cada povo traz suas peculiaridades”, mas “o que nos torna parecidos é a resiliência que desenvolvemos ao longo do tempo e que permite que possamos dar continuidade ao que somos”.
Dos 13 mil indígenas Wapichana, cerca de 9.500 vivem no Brasil, em Roraima – o restante está na Guiana e na Venezuela. “Somos filhos do Sol e da Lua”, diz Cristino Wapichana, quando a reportagem lhe pergunta sobre o que dá a identidade a seu povo. “Meu povo mora há mais de 4.500 anos nessa região, então conhecemos tudo dela.”
Dados
Quantificar quantas são as nações indígenas dentro do Brasil atual é uma tarefa que varia conforme os critérios. Mas a importância de ressaltar essas diferenças é tão grande que até entidades governamentais relacionadas ao tema se atualizaram, adotando o plural. É o caso da Funai, que deixou de ser Fundação Nacional do Índio para se tornar Fundação Nacional dos Povos Indígenas. A pasta do governo responsável pela questão, aliás, também se chama Ministério dos Povos Indígenas.
Uma evolução considerável para um país que, em sua primeira Constituição, em 1824, nem sequer considerava a existência de povos indígenas – como se eles não fossem cidadãos e integrantes do Brasil que se formava. Passados 164 anos, quando a Constituição atual foi aprovada, o tema não só foi abordado, como a necessidade de demarcar as comunidades indígenas passou a ser prevista.
De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 897 mil brasileiros se consideram indígenas. Desses, contudo, 517 mil vivem em terras indígenas – dados de 2010, já que o último censo ainda não divulgou tais informações de forma abrangente. Segundo o IBGE, essas populações englobam 305 povos diferentes, falantes de 274 línguas.
Informações ainda preliminares do censo, contudo, indicam um aumento considerável. Que não necessariamente significa que houve um crescimento das populações indígenas. Políticas afirmativas e uma maior conscientização fazem com que mais pessoas de etnia autóctone se identifiquem como tal – e como o IBGE colhe tais informações de modo declaratório, isso implica em um aumento. “Dados preliminares do censo demográfico de 2022 registram mais de 1,6 milhão de indígenas em todo o país”, ressalta Tuxá, da Apib.
O projeto Terras Indígenas no Brasil, realizado pelo Instituto Socioambiental, traz números um pouco diferentes. A organização realiza estudos sistemáticos sobre as populações indígenas desde 1994, quando herdou um banco de dados que continha dados desde os anos 1960. Mas eles consideram não a quantidade de pessoas que se declara como indígena; e, sim, estimam quantos são os que moram nas terras consideradas indígenas do país – 735, compreendendo 13% do território e considerando que apenas 496 estão homologadas.
De acordo com os dados da organização, são 271 povos, falantes de 154 línguas, num total de 681 mil indivíduos.
Política e justiça
Mas se a diversidade é importante e precisa ser sempre respeitada, os cinco séculos de opressão física e cultural fizeram com que a maior parte desses povos se unisse nas pautas, sobretudo naquelas que visam proteger os direitos dos povos originários na sociedade estabelecida.
E eles parecem otimistas com a saída do ultradireitista Jair Bolsonaro do comando do país. “O novo governo criou uma expectativa muito positiva nos povos indígenas”, diz Munduruku. “A experiência com o governo anterior foi muito traumatizante para os brasileiros em geral. Há uma esperança no ar que é possível perceber pelas ações promovidas desde janeiro desse ano.” Ele cita, entre outros pontos, “o cuidado com os yanomami” e “a desintrusão de garimpeiros de áreas indígenas”.
“Há mais de 500 anos povos indígenas lutam contra o genocídio. Entre os povos que possuem poucos sobreviventes e que correm o risco de serem extintos, podemos citar o povo Juma, no município de Canutama no Amazonas; Avá-canoeiro, localizados entre Tocantins e Goiás; povo Kanoê com sua terra situada no estado de Rondônia; Akuntsu, povo que fica em Rondônia; e Piripkura que tem sua Terra Indígena no estado do Mato Grosso”, enumera Tuxá.
“Isso ocorre porque não houve uma política consistente de proteção desses povos e de proteção dos seus territórios através das políticas de Estado. Com base nos últimos quatro anos, esses povos foram mais ameaçados, e equipara-se até à época da ditadura militar”, acrescenta o coordenador da Apib.
“A gente percebe uma humanidade mais fina [no novo governo]. O outro não tinha isso, e ele falava que o erro foi que aqui não foram mortos os indígenas como fizeram nos Estados Unidos”, recorda Wapichana.
Em abril, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou a demarcação de terras indígenas em seis estados brasileiros. Cumprindo a promessa de campanha, em que dizia “nenhum centímetro de terra indígena”, Bolsonaro travou esse tipo de mecanismo ao longo de seus quatro anos no Planalto.
Munduruku lembra que “há mais de 500 terras reconhecidamente espalhadas por todo o país” e “demarcar meia dúzia não faz muita diferença no conjunto”. “Mas é uma sinalização importante [do governo] que pode culminar com o desenvolvimento de políticas públicas futuras.”
“Também ajuda a fortalecer as organizações indígenas que poderão sugerir outras ações capazes de proteger os direitos ancestrais”, prossegue ele. “A demarcação dos territórios é o princípio basilar para proteger os modos de vida desenvolvidos pelos povos indígenas durante centenas de anos. Quanto mais terra demarcar, maior a garantia de continuidade da vida para cada brasileiro.”
O pedagogo Terena avalia que as demarcações existentes no Brasil “ainda são muito tímidas” e espera que todas as necessárias sejam homologadas.
Com julgamento em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF), a tese do marco temporal pode prejudicar essa noção de territorialidade dos indígenas. E os preocupa. A questão envolve um entendimento jurídico de que, para ter direito à demarcação, o povo deveria estar no local almejado antes de a atual Constituição (de 1988) ter entrado em vigor.
Ativistas já chegaram a afirmar ironicamente que uma reciprocidade seria justa, ou seja, que não indígenas só poderiam ocupar espaços que já fossem de europeus antes de 1500.
“O povo Munduruku será diretamente afetado pela tese do marco temporal porque está reivindicando ampliação de sua área e demarcação de novos territórios. Com a aprovação da tese, suas reivindicações serão consideradas nulas”, explica o escritor. “O mesmo se pode dizer de todos os povos indígenas em situação semelhante. O marco temporal é uma declaração de guerra contra os povos originários e será uma nova versão da colonização dos corpos desses mesmos povos.”
“[A tese] prejudica a todos os povos”, sentencia Wapichana.