20/10/2025 - 10:28
Sistema Cantareira fechou setembro no pior nível para o mês desde 2015, e Sabesp aumentou período de entrega de água com pressão reduzida. Há saídas mais inteligentes para atenuar o problema?Há um fantasma nas torneiras de São Paulo que preocupa os moradores: a histórica crise hídrica que teve seu auge entre os anos de 2014 e 2015. Em um cenário de catástrofe climática, dados atuais e relatórios recentes indicam que um novo período de escassez de água pode estar chegando às torneiras paulistas.
O alerta veio na última edição do relatório mensal do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) sobre o Sistema Cantareira, o maior destinado à captação e tratamento de água para a Grande São Paulo. Os reservatórios entraram na primavera com 28% do volume útil — o menor índice para o mês desde 2015.
Tecnicamente, quando o nível está abaixo de 30%, a operação é considerada em faixa de restrição. Há dez anos isso não ocorria.
Segundo o documento, os índices de chuva e vazão “se mantiveram bem abaixo da média histórica”. “A precipitação acumulada foi de apenas 58% da média, enquanto a vazão afluente ficou em torno de 41% da média para o período”, aponta o relatório.
Os ciclos hidrológicos para a região indicam que os meses secos ficaram para trás e agora é esperada a estação chuvosa. O problema é que, com as mudanças climáticas, o nível de chuva pode ser insuficiente para repor as perdas do reservatório.
“Chama a atenção que no Sistema Cantareira, a cada ano, […] o volume mínimo durante as estiagens é cada vez menor com o passar do tempo”, afirma o engenheiro e consultor de saneamento Antonio Eduardo Giansante, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
O Cemaden afirma que as projeções indicam que, “mesmo em um cenário favorável, com chuvas próximas à média histórica, os reservatórios devem permanecer em faixas mais críticas”. O Cantareira deve virar o ano em alerta.
Dados meteorológicos indicam que nos últimos 12 meses, o sistema recebeu 1.358 milímetros de chuva, valor 10% menor do que a média histórica. Se o verão for ainda menos chuvoso, pode haver um “agravamento da situação”, frisa o Cemaden.
Pressão reduzida
A Sabesp, companhia de saneamento responsável pela operação em São Paulo, tomou as medidas emergenciais de praxe. Em nota, a empresa esclareceu que desde o dia 27 de agosto passou a adotar a “medida preventiva e de contingência temporária” para preservar os níveis de água dos reservatórios e mananciais, entregando água com menos pressão durante o período noturno. A faixa, que era de 8 horas, foi ampliada em mais duas horas no dia 22 de setembro — agora a redução de pressão ocorre das 19h às 5h.
Com a água distribuída em menor pressão, diminui-se a incidência de vazamentos na rede e, com isso, o desperdício decorrente da própria operação. O problema é que, sobretudo em regiões mais periféricas, a água acaba não chegando como deveria — e muitos acabam ficando com as torneiras secas ao menos em parte do dia.
“É uma medida que prejudica as camadas mais baixas da população, não apenas porque são quem muitas vezes não têm capacidade de reservação [caixas d’água em casa] como também moram em áreas mais altas, o que dificulta a chegada da água após a retomada do bombeamento”, analisa o geógrafo Wagner Costa Ribeiro, professor na Universidade de São Paulo.
Garoa e tempestade
O cenário de crise hídrica iminente afeta diretamente a chamada Região Metropolitana de São Paulo, um conjunto de 39 municípios onde vive 10% da população do Brasil. Mas o sintoma não é exclusividade: o chamado ciclo hidrológico está desregulado por conta das mudanças climáticas e isso afeta a captação e o armazenamento de água em todos os lugares.
Não é só a diminuição dos índices pluviométricos que prejudica a captação de água. É também a inconstância. “A São Paulo da garoa está cada vez mais distante; o que temos é a São Paulo das trovoadas”, diz Ribeiro.
A frase de efeito tem explicação. Com as mudanças climáticas, tempestades fortes e intensas se alternam com períodos de estiagem. Só que chuvarada assim não resolve o abastecimento: em geral, vem com enchentes e outros problemas.
É o que aconteceu no Rio Grande do Sul, no ano passado — e isso ilustra bem como o problema ambiental não está localizado, mas ocorre em todos os lugares.
“As alterações no regime climático têm nos atingido. São períodos de chuva superconcentrados, que chegam a ser catastróficos, alternados com seca”, explica o geógrafo Luiz de Campos Júnior, do projeto Rios e Ruas. “No Sul do país, por exemplo, as intensas chuvas não serviram para o abastecimento.”
Ele diz que parte dessa água escoa e outra parte acaba erodindo o solo — contribuindo no futuro próximo para diminuir ainda mais a vazão dos rios. “Um leigo pode pensar que isso resolve o problema. Não resolve. Inclusive porque barragens acabam estourando e muita água reservada ainda se perdendo, assoreando tudo.”
Soluções para a crise hídrica
Especialistas ouvidos pela DW alertam que a recorrente crise hídrica paulistana precisa ser tratada com remédios mais eficazes — e servir de exemplo também para outras regiões enfrentarem os cenários de escassez.
Uma crítica recorrente é a falta de esforços justamente para reduzir os vazamentos na distribuição. Há estudos que indicam que a perda de água pelo próprio sistema fique entre 22% e 30%. Ribeiro diz ser “urgente” fazer “um mapeamento” do problema e trabalho de manutenção e recuperação para “eliminar a perda de água nas tubulações”.
“Seria preciso um investimento altíssimo com zero retorno em termos de receita”, avalia o estatístico Vicente Andreu Guillo, ex-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA).
Também seria importante intensificar programas de reúso de água. O geógrafo Campos Júnior vê nisso um “gargalo” do sistema. “A distribuição, na região metropolitana, é muito boa. Mas a coleta e o tratamento de esgoto ainda não”, afirma. “O esgoto precisa ser coletado e tratado. Só coletado não adianta.”
O engenheiro Giansante alerta ainda para a necessidade de proteger os mananciais. “Ter política contínua de recuperação e preservação de mananciais, principalmente pela sempre necessária e indispensável revegetação, já não é algo secundário, mas primordial”, cobra ele.
Olhar para as fontes e água com mais respeito e conscientização é pauta antiga de ambientalistas. Calcula-se que centenas de rios e córregos corram pela Região Metropolitana de São Paulo. A grande maioria, no subsolo, enterrados pela urbanização feita sem planejamento. Outros tantos sofrem com poluição.
“Há muito tempo precisamos de soluções para recuperar esses rios de São Paulo, criando minirreservatórios locais com logística de distribuição e gestão comunitária dessa água”, defende o ativista ambiental Adriano Sampaio, do projeto Existe Água em SP.
Um outro fator que reduz a captação de água em sistemas como o Cantareira é o uso intensificado de águas de rios afluentes para irrigação. Novamente, a tragédia climática tem seu peso: com as chuvas irregulares, mais e mais o agronegócio precisa recorrer a tecnologias do tipo para garantir a produção.
“O principal problema do Cantareira em minha opinião é o conflito com a irrigação”, argumenta Guillo. Ele acredita que seria preciso um acordo entre governos, empresa de saneamento e produtores rurais, com mediação da Agência Nacional de Águas, para que o interesse público do abastecimento seja respeitado.