Efeitos da enchente histórica se avolumam e capital gaúcha enfrenta falta de água e alimentos frescos, precariedade e casos de conflitos em abrigos e restrições em hospitais e asilos.”Por enquanto estamos todos solidários e colaborativos, mas quando essa água baixar e cada um lavar a sua lama, vai ter doença, vai ter fome, porque as pessoas virão das cidades que desapareceram para a cidade grande, em um grande êxodo climático”, alerta a ambientalista Tania Pires.

Fundadora do Centro de Inteligência Urbana de Porto Alegre (Ciupoa), ela mesma se tornou o que chama de desabrigada climática, ao deixar sua casa na zona sul de Porto Alegre quando o imóvel começou a encher de água.

“Há mais de uma década trabalho com prevenção de riscos, alertando a necessidade de populações carentes deixarem suas casas, mas só quando fui obrigada a deixar a minha é que percebi o quão doloroso é esse processo”, desabafa.

A elevação das águas do Guaíba expôs a fragilidade de parte da infraestrutura urbana da capital do estado mais populoso do sul do país. O sistema de contenção de enchentes, composto por diques, comportas e um muro na região costeira, data de 1974 e tinha falhas estruturais e de manutenção quando a enxurrada dos rios Jacuí, dos Sinos e Caí chegou à cidade.

A tomada por águas barrentas afetou a operação das bombas de captação de água limpa da companhia de distribuição. Das seis bombas, apenas uma continuou funcionando, gerando a cruel ironia: na cidade onde pessoas são resgatadas de suas casas tomadas pela água, quatro a cada cinco habitantes ficou sem água potável nas torneiras.

Com o passar dos dias, outras três bombas voltaram à atividade, mas aquela localizada no arquipélago do delta do rio Jacuí não deve voltar a operar neste ano, o que pode levar a racionamento de água mesmo nos bairros reabastecidos.

“O Morro da Cruz (bairro pobre da cidade) está há cinco dias sem água, e já avisaram da Prefeitura que não há caminhão-pipa para enviar para lá”, reclama Pires.

Asilo ilhado e ameaçado

Isolado no meio a um lago formado pela enchente nas proximidades do estádio do Beira Rio, na zona sul da cidade, o asilo Padre Cacique passou por horas de desespero na última terça-feira. Já há quatro dias sem água, a instituição de 125 anos contava com o poço artesiano para o preparo dos alimentos e suporte aos mais debilitados – colocados em xeque quando a luz elétrica foi cortada por segurança, para evitar choques em pessoas nas águas e curto-circuitos na rede.

A decisão súbita revoltou os profissionais do local. “Neste momento são 130 pessoas dentro desta instituição sem água, e agora sem luz, desligada de uma hora para outra sem que tivéssemos tempo de correr atrás de uma solução, de um plano de evacuação”, reclama a médica geriátrica Júlia Santana.

Entre essas pessoas, estão 30 funcionários e 32 pacientes acamados, cujos cuidados de saúde paliativos dependem do fornecimento de luz e água. “Alguns precisam de respirador, outros de aspiração pulmonar, oxigênio… São muitas situações, em que o pior desfecho possível seria o óbito de um paciente pela falta de luz”, desabafa.

Poucos minutos antes da troca do turno, no entanto, a diretora-geral da instituição, Elisiane de Albuquerque, observava satisfeita a chegada de dois geradores a bordo do caminhão do Exército que faz a ponte do asilo com o resto do mundo. “Os corredores e quartos ficarão no escuro, o que é ruim e perigoso, mas ao menos teremos água para cozinhar e freezer para preservar os alimentos. Parece pouco, mas já é muito”, ressalta, observando um dos seu pacientes ir embora no mesmo caminhão para ser operado.

Diante do caos instalado, os hospitais de Porto Alegre vêm atendendo somente pacientes de urgência e emergência. Segundo oficiais, um dos maiores problemas enfrentados é a falta de profissionais, seja por terem sido afetados pela enchente ou morarem na região metropolitana e não conseguirem chegar à capital para trabalhar. No asilo ilhado, alguns funcionários estão dormindo no próprio local, como as própria Santana e Albuquerque.

Abrigos inseguros

Nos últimos dias, os poucos momentos de Santana fora da casa de acolhimento foram em abrigos na região metropolitana. O maior deles, na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), em Canoas, já reune mais de 8 mil pessoas desabrigadas. O terreno, no entanto, é fértil para o crescimento da criminalidade.

Até quarta-feira, seis homens haviam sido presos sob suspeita de estupros em abrigos de Porto Alegre, Canoas e Viamão, na região metropolitana. Quatro situações envolvem crianças de seis e 10 anos, e em uma a vítima é uma jovem. Os episódios de Canoas e Porto Alegre, segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP), envolveram familiares das vítimas.

Em outros espaços, revelam-se nos ambientes comunitários emergenciais as rixas já presentes em tempos de normalidade. “A identidade completa dos abrigados aqui é preservada ao máximo possível, para que membros de facções criminosas não possam reconhecer membros de facções rivais”, conta sob sigilo a funcionária de um dos maiores abrigos da capital.

“O pessoal começa a brigar por qualquer coisa, estão todos à flor da pele, briga até por comida ou café”, relata uma moradora da Vila Tio Zeca, que quando chegou à sua casa vinda do trabalho, encontrou-a com água pela cintura. Segundo ela, nem mesmo o dinheiro ajuda a suprir o desejo por café, já que não é possível comprar água no supermercado, onde o item está em falta.

Crise logística

Porto Alegre possui cinco grandes portas de entrada rodoviárias, além de ferrovia e o aeroporto Salgado Filho. Apenas uma rodovia permanece em funcionamento, enquanto os demais caminhos estão submersos — incluindo a pista e o saguão do aeroporto. Com tantas portas fechadas e a única aberta direcionando para o litoral, ao invés do interior do estado e mesmo para Santa Catarina, o abastecimento de itens básicos não consegue repor o que é retirado das prateleiras.

Água mineral é um artigo impossível de ser encontrado nas gôndolas desde pelo menos o último sábado, quando moradores começaram a fazer estoques. O mesmo acontece com frutas e alimentos frescos, com a inundação da Central de Abastecimento do Rio Grande do Sul (Ceasa), nas proximidades do aeroporto, e do Mercado Central da cidade.

Fenômeno semelhante ocorre com combustíveis: filas enormes se formam nos postos de gasolina quando há o produto à disposição, inclusive para os tanques de barcos e motos aquáticas que fazem boa parte dos resgates de moradores ilhado em suas casas – revelando a absoluta necessidade dos voluntários que vêm de diferentes cidades e estados para cobrir as lacunas deixadas pelo poder público.

“Estamos montando o avião no ar, e os órgãos públicos também”, avalia Santana, que após 36 horas deixava o asilo na caçamba de um caminhão. Para a médica, é necessária uma maior cultura de prevenção e protocolos de emergência para casos extremos. Um esforço, porém, que não costuma angariar votos diante da falta de visibilidade, e que por conta disso deixa a população exposta a cada nova tragédia.