Resposta à crise do petróleo nos anos 1970, programa lançado há 50 anos pela ditadura estimulou produção de biocombustíveis. Especialistas elogiam pioneirismo, mas também apontam que estratégia não foi isenta de erros.Era o auge da ditadura militar (1964-1985) e o ufanismo havia se incorporado de forma intensa na comunicação institucional quando o general Ernesto Geisel, penúltimo líder da ditadura militar, publicou o decreto, em 14 de novembro de 1975, criando o Programa Nacional do Álcool (Proálcool).

Do ponto de vista científico e socioeconômico, fazia sentido. Por conta do contexto geopolítico no Oriente Médio, de 1973 a 1974 o preço do barril do petróleo havia saltado de cerca de 3 dólares para quase 13 dólares. O impacto foi imenso na economia brasileira, que na época importava quase 80% do combustível fóssil que consumia.

O governo decidiu então abraçar pesquisas que vinham sendo realizadas e fomentou o desenvolvimento de um motor a etanol que fosse viável para alimentar a frota automotiva do país. No jargão político, era o ganha-ganha. O setor sucroalcooleiro enfrentava dificuldades porque o preço do açúcar no mercado internacional havia caído muito nos anos 1960 e ainda vinha em lenta recuperação.

“Foi uma estratégia de governo fantástica”, comenta o engenheiro agrônomo Gonçalo Pereira, professor na Universidade Estadual de Campinas. “Ninguém acreditava que o biocombustível poderia rivalizar com o petróleo em volume. E a gente conseguiu.”

“O programa buscava enfrentar o problema por meio de duas metas: reduzir a dependência do petróleo importado e aproveitar a estrutura agrícola já existente”, resume o engenheiro químico Luiz Gustavo Lacerda, professor na Universidade Estadual de Ponta Grossa.

Com incentivos públicos, o Proálcool tinha potencial, portanto, não só de realizar uma transição energética vista como urgente. Significava também movimentar o agronegócio, gerar novos empregos, desenvolver tecnologia no setor automotivo e injetar novos elementos marqueteiros para vender a ideia do Brasil que podia dar certo.

“Obviamente que um certo ufanismo nacionalista também serviu como motivação para o lançamento do programa”, acrescenta o historiador e estatístico Marcelo Gabriel, coordenador do programa de pós-graduação em comportamento do consumidor da Escola Superior de Propaganda e Marketing e especialista em mercado automotivo.

Alívio ao consumidor durou pouco tempo

Em 1979, a Fiat produziu em escala o primeiro carro movido exclusivamente a etanol no país, o Fiat 147 apelidado de “cachacinha”. Nos anos 1980, esse tipo de veículo se popularizou no país. “O Proálcool atingiu um efeito notável e positivo no curto e médio prazo. Com o programa, o Brasil foi reconhecido como referência mundial no uso de biocombustíveis”, contextualiza Lacerda.

Mas a lua de mel do brasileiro com o álcool no motor acabou em 1989, quando já não havia mais incentivo público para o setor e o preço do açúcar no mercado das commodities disparou. Ao mesmo tempo, o preço da gasolina não assustava mais.

“Com a queda no preço internacional do petróleo, a partir de meados da década de 1980, houve redução significativa dos incentivos públicos, o que resultou em cortes de investimentos e episódios de escassez de álcool nos postos de combustíveis, evidenciando a forte dependência do programa em relação ao apoio estatal”, diz Lacerda.

Especialistas lembram também que faltou planejamento de longo prazo — a política teria de proteger o setor, para que ele não ficasse à deriva em situações de oscilação das commodities no mercado internacional e, claro, o consumidor não amargasse o tanque vazio e as filas para conseguir combustível nos postos.

“A falta de política de longo prazo acabou gerando insegurança e instabilidade. Ainda, a expansão da cana trouxe concentração fundiária, trabalho precário e, em algumas regiões, pressão sobre os ecossistemas. A longo prazo, também houve uma política de subsídios mal gerida, o que minou a sustentabilidade econômica do programa”, enumera o professor Lacerda.

Incentivo da ditadura ao etanol promoveu o desmatamento

De modo estrutural, o Proálcool também pode ser criticado por ter promovido o desmatamento — a conversão de áreas florestais em fazendas de cana-de-açúcar — e por ter privilegiado os grandes produtores do agronegócio. “A participação dos pequenos agricultores foi limitada, e a concentração de investimentos acabou favorecendo as regiões mais estruturadas do setor sucroalcooleiro”, ressalta Lacerda.

Outro ponto importante é que a monocultura de cana exige muitos fertilizantes, pesticidas e água. Se o manejo não for conduzido de forma adequada, o impacto ambiental é grande.

A revolução flex e os créditos de carbono

A virada nessa história viria, mais uma vez, com tecnologia: em 2003 foram lançados os primeiros carros flex no Brasil — o pioneiro foi o Gol Total-Flex, da Volkswagen. De acordo com a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, 85% dos veículos em circulação no país funcionam tanto com gasolina quanto com etanol.

Com as preocupações climáticas urgentes, há uma releitura da importância do Proálcool sob a perspectiva do impacto desse combustível no meio ambiente. Nesse contexto, o governo brasileiro instituiu em 2017 o RenovaBio, política nacional de biocombustíveis que incentiva o uso do álcool. Uma das principais bandeiras do programa é o fato de que a cadeia de produção e distribuição do biocombustível pode receber créditos de carbono se comprovar que está mitigando o impacto ambiental.

O engenheiro Pereira é um grande defensor do etanol. Ele afirma que o combustível pode ser considerado energia limpa, dado o impacto de sua produção e a emissão menos poluente de sua queima. Ele defende que sejam utilizadas áreas já abertas — usadas para a pecuária, por exemplo — para o plantio de cana. “Esses pastos são de baixíssima qualidade [ambiental]. Se você coloca a cana, começa a passar de emissão [de CO2] para captura”, explica.

Não é algo sem controvérsias, entretanto. Um ponto necessário é a substituição do maquinário envolvido na produção sucroalcooleira, que precisa deixar de usar óleo diesel e migrar totalmente para os biocombustíveis. “Hoje em dia já vem acontecendo isso”, diz o agrônomo. “É preciso fazer a transição na cadeia inteira.”

Para Pereira, a “usina perfeita” também precisa substituir os fertilizantes químicos por produtos biológicos naturais. E tratar os resíduos, de forma a neutralizar toda a operação.

Segundo Gabriel, hoje é possível ter responsabilidade ambiental em toda a cadeia produtiva do etanol de forma competitiva, graças ao maquinário agrícola mais avançado, às exigências ambientais atuais e aos padrões de exportação. “Todos os requisitos sociais e ambientais são bastante rigorosos”, afirma o historiador.

Ele admite que há uma “pressão global” sobre a produção e o consumo de etanol, já que o discurso preponderante é que a monocultura da cana “ocupa espaço no campo que poderia ser destinado à produção de alimentos”. Mas contra-argumenta que a ciência joga a favor do etanol. “Os melhoramentos genéticos que vêm sendo introduzidos para um melhor aproveitamento da cana plantada têm melhorado inclusive seu potencial energético e reduzido as emissões”, pontua.

Lições e possibilidades

“O Proálcool mostrou que a transição energética é possível”, ressalta Lacerda. “Mas exige planejamento de longo prazo, diversificação de fontes, inovação contínua e equilíbrio entre economia, sociedade e meio ambiente.”

Ele acredita que a grande lição que ficou foi essa: o programa foi pioneiro na combinação entre segurança energética e sustentabilidade. E este é um tema essencial da contemporaneidade. “Abriu caminho para tecnologias mais modernas, como o etanol de segunda geração e os motores flex”.

O Brasil tem condições naturais que propiciam a produção em larga escala, ao contrário de países em outras zonas do planeta. “[O etanol] não pegou no resto do mundo por problemas de latitude. Fora das zonas tropicais não se consegue produzir etanol de forma eficiente”, pontua Pereira.

Atualmente, de acordo com dados da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Unica), o Brasil produz 37,3 bilhões de litros de etanol por ano, 29,1 bilhões a partir da cana e o restante a partir do milho.

Segundo cálculos de Pereira, a extração de petróleo custa meio centavo de dólar por megajoule de energia obtida. Já o etanol custa dez centavos para o mesmo resultado energético. Um poço de petróleo produz em média quatro vezes mais do que toda a energia somada das 380 usinas de etanol em funcionamento no Brasil. “Não dá para competir, em preço, com o combustível fóssil”, afirma.

Essa questão “do custo” é um fator que dificulta, na opinião dele. A compensação poderia vir por meio do marketing verde. “Quando você queima um megajoule de gasolina, você emite cerca de 80 gramas de CO2 na atmosfera. Quando queima etanol, você solta apenas 20. Esse número tinha de estar nos postos de combustível”, cobra ele.

Pereira também acha que o RenovaBio pode avançar para que o consumidor, ao escolher o etanol, seja recompensado com créditos de carbono. “O Brasil é o único país do mundo que tem a maior parte de veículos da frota flex. Você chega no posto e escolhe o que quer. Na hora que essa moeda do carbono voltar para o consumidor, ninguém segura”, argumenta ele.