20/09/2025 - 5:33
Iniciativa do governo federal prevê a instalação de 100 placas em 13 estados para sinalizar locais históricos da memória negra.Durante quase duzentos anos, entre os séculos 17 e 19, era no Cais da Cidade Baixa, em Salvador, que um enorme contingente de africanos retirados à força de suas terras de origem chegava para ser escravizado no Brasil após uma cruel travessia pelo Oceano Atlântico. A capitania e província da Bahia recebeu cerca de um terço dos aproximadamente cinco milhões de africanos escravizados que foram trazidos ao país.
Era ali mesmo, próximo ao cais – localizado na região onde hoje fica o Elevador Lacerda –, na antiga Freguesia da Conceição da Praia – onde hoje é o bairro do Comércio –, que a população escravizada e os libertos trabalhavam em atividades que variavam do serviço de carregadores até à condução de pequenos barcos para trazer ou levar mercadorias e pessoas dos navios ao cais, e do cais aos navios, numa época em que a economia local dependia de tudo o que chegava e saía de seu porto.
No último dia 18 de agosto, uma placa foi colocada no local onde funcionou o antigo cais. A iniciativa é parte do projeto chamado Sinalização e Reconhecimento de Lugares de Memória dos Africanos Escravizados no Brasil. Coordenado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), a iniciativa irá instalar 100 placas de sinalização por 13 estados do Brasil, em referência a locais históricos e também ao patrimônio imaterial.
A diversidade cultural africana na Bahia
Outro local que receberá uma placa em Salvador é a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, localizada no bairro do Pelourinho, em Salvador. Ela começou a ser erguida em 1704 por uma das primeiras irmandades de homens negros do Brasil, formada em 1685. Construída por escravizados e libertos, a igreja foi financiada pelos chamados escravos de ganho, e demorou quase 200 anos para ser finalizada. De arquitetura barroca, foi um símbolo da resistência à escravidão.
“É tão difícil resumir [a sensação de estar numa missa no Rosário dos Pretos], porque é uma experiência fabulosa. Eu tenho uma ancestralidade negra, e era uma sensação tão atávica de ter vivido aquilo. E uma sensação de que, se existe Deus, ele está tão feliz com aquela festa”, diz a pesquisadora e escritora Helenita Monte de Hollanda, coautora do livro Basílicas e Capelinhas: um estudo sobre a história, arquitetura e arte das igrejas de Salvador.
Eram nos raros períodos de descanso que os trabalhadores carregavam as pedras para construir a igreja. Muitos dos homens negros que a ergueram eram católicos oriundos do Congo e de Angola, locais já cristianizados pela exploração portuguesa. Atualmente, a missa na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos é um exemplo do sincretismo religioso da Bahia, com instrumentos de percussão integrados à liturgia da missa.
“É muito comovente porque eles entram descalços, com roupas próprias da irmandade, dançando e cantando. Eles cantam as injustiças sociais, o preconceito racial. A missa é uma festa, os atabaques são de arrepiar”, conta Monte de Hollanda.
De acordo com Moema Carvalho, coordenadora-geral de Memória e Verdade da Escravidão e do Tráfico Transatlântico de Pessoas Escravizadas do MDHC, nas igrejas, as placas vão ser instaladas nas paredes. “Cada placa é um acordo diferente, a gente tem que pensar como que a gente coloca uma placa que não esteja atrapalhando a circulação da população e, ao mesmo tempo, que ela passe a fazer parte do cotidiano daquela população.”
Ao todo, 25 placas de sinalização histórica serão espalhadas pela Bahia. Cada placa do projeto terá um código QR com informações sobre a história do lugar. “A gente já tem uma diretiva do gabinete ministerial de que a gente precisa de mais 600 placas”, diz Moema Carvalho.
Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, foi o primeiro local sinalizado
Coordenada pelo MDHC, a iniciativa de sinalização destes lugares de memória tem a parceria dos Ministérios da Igualdade Racial, da Cultura, da Educação e da Unesco. O projeto é baseado no Inventário Nacional dos Lugares de Memória dos Africanos Escravizados no Brasil, publicado em 2013 pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pela Unesco.
Assim como a Bahia, o estado do Rio de Janeiro também receberá 25 placas. A primeira placa do projeto foi colocada no Cais do Valongo em novembro de 2023. Localizado numa região da Zona Portuária do Rio de Janeiro chamada Pequena África, o Cais do Valongo funcionou entre 1811 e 1831, sendo o principal porto de entrada de escravizados na América.
No último dia 12 de setembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma lei que reconhece o Cais do Valongo como patrimônio histórico e cultural afro-brasileiro essencial à formação da identidade nacional. “Até hoje a gente continua encontrando remanescentes ósseos nas reformas das estruturas daqueles prédios que estão ali na Pequena África, que compõem o Cais do Valongo”, diz Carvalho.
Até novembro deste ano, no mês da consciência negra, todas as 100 placas do projeto estarão instaladas. Na segunda etapa, prevista para começar no primeiro semestre do ano que vem, serão realizadas ações educativas e produção de materiais pedagógicos voltados para o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena.
Entre 1539, data apontada por historiadores como o início da escravização de africanos no Brasil, e 1888, data da abolição formal da escravatura com a Lei Áurea, passaram-se longos 349 anos. Em comparação, há bem menos tempo, só há 137 anos que a escravidão chegou ao fim.
“O objetivo do ministério é que possamos contar a verdadeira história da população brasileira”, explica a coordenadora. “Não foi a Princesa Isabel que nos salvou, vamos contar que muitas pessoas morreram e foram sacrificadas para estarmos aqui”, continua. “Essa história, os nossos corpos, as nossas ancestralidades, as nossas famílias não devem ser motivo de vergonha ou de chacota, muito pelo contrário, elas devem ser motivo de orgulho. Temos uma história muito bonita para contar”, conclui Moema Carvalho.