Prestes a ganhar a primeira sala de concertos em um território de favela do mundo, Brasil exporta talentos da periferia para escolas de música e orquestras internacionais.O Brasil receberá em breve a primeira sala de concertos em um território de favela do mundo. Com cerca de 1.300 metros quadrados de área construída e capacidade para receber 533 pessoas, o Teatro Baccarelli abrirá as portas em Heliópolis, considerada a maior favela em área territorial de São Paulo, consolidando a trajetória das orquestras sociais no país.

Em construção desde o ano passado, a sala deve ser inaugurada no próximo dia 25 de novembro e colocar a favela de Heliópolis no cenário cultural de São Paulo. O espaço também é multiuso e deve ser aberto como palco para apresentações de grupos e manifestações populares da região.

O teatro faz parte de um movimento que ganhou fôlego no Brasil a partir da década de 1990, quando foram fundados vários projetos sociais que utilizam a música como forma de promoção da cidadania e inclusão de crianças e adolescentes. Algumas dessas inciativas são hoje responsáveis por formar talentos da música brasileira de destaque em escolas de música e orquestras internacionais.

Entre as iniciativas mais conhecidas no Brasil, estão Neojiba, da Bahia, a Ação Social pela Música, do Rio de Janeiro, a Orquestra Criança Cidadã, do Recife, e o Instituto Baccarelli, de São Paulo.

Este último é a origem do Teatro Baccarelli e atende cerca de 1,6 mil alunos anualmente. Desde 1996, ano em que foi fundado, o Baccarelli já exportou diversos alunos para fora do país. Neste ano, um dos alunos se tornou violinista profissional na orquestra de Lyon, na França. É de lá também atual o primeiro trompa da Orquestra Nacional do Chile.

Já a Orquestra Criança Cidadã, que nasceu em 2006 na favela do Coque, no Recife, na época com o pior IDH da cidade, já enviou alunos para estudar música na Polônia, Áustria, República Tcheca, Alemanha, México, Canadá e Espanha.

Romper preconceitos e formar cidadãos

Um levantamento da Funarte de 2018 estimava que existiam 371 orquestras no Brasil, mas não há dados atualizados nem oficiais de quantas delas são sociais. Em 2012, um anuário chegou a mapear a quantidade de projetos que promoviam a integração social por meio do ensino de instrumentos de orquestra para crianças e adolescentes. Até então, eram 92 iniciativas em 20 estados.

De acordo com o levantamento, até a década de 1990 havia apenas projetos pontuais no país, como um iniciado em Volta Redonda, no Rio de Janeiro, na década de 1970. Uma das primeiras iniciativas dessa nova leva chamada “cidadania sinfônica” foi o Música É Vida, nascido em São Caetano, Pernambuco, que serviu de inspiração para o filme Orquestra dos Meninos (2008).

O Baccarelli nasceu em 1996, após o maestro Silvio Baccarelli (1931-2019) ver famílias atingidas por um incêndio em Heliópolis. O projeto, que começou com o ensino de música para 36 crianças, mantém quatro grupos artísticos. Entre eles, a Orquestra Sinfônica Heliópolis, primeira orquestra nascida em uma favela, cuja direção artística é de Isaac Karabtchevsky, decano da regência nacional.

Para Edilson Venturelli, CEO do Instituto Baccarelli, projetos de orquestra social ajudam a romper o preconceito sobre audiências que consomem e quem produz música erudita. “No Brasil, existe uma falsa sensação de que música clássica é algo de elite, seja ela econômica ou pensante. Quando, na verdade, se você for pesquisar, a maioria dos músicos profissionais vêm da classe média e baixa”, afirma.

O Baccarelli, por exemplo, começou numa escola, e para existir foi preciso convencer a diretoria de que valia a pena usar parte do tempo para que as crianças aprendessem instrumentos de cordas como violino, viola, violoncelo e contrabaixo. Segundo o CEO, no começo foi preciso convencer também as crianças e famílias sobre os encantos da música clássica.

“A gente tinha que convencer os primeiros de que música clássica era possível, principalmente convencer suas famílias de que música clássica poderia ser inclusive uma oportunidade de profissionalizar na fase jovem e adulta”, conta Venturelli.

Agora, depois de quase 30 anos, esse convencimento já não é necessário, diz ele. “A comunidade quer os seus filhos aqui dentro. Eles veem os benefícios que o estudo da música clássica traz, tanto na formação cognitiva como na sociabilização, nas ferramentas emocionais”, analisa.

Tanto o Baccarelli quanto outros projetos sociais de música clássica exitosos no Brasil trazem no seu DNA o objetivo de formar cidadãos e não profissionais da música. Esta acaba sendo uma consequência, diz o juiz João Targino, que em 2006 fundou a Orquestra Criança Cidadã (OCC) em parceria com o maestro Cussy de Almeida (1936-2010) e com o desembargador Nildo Nery dos Santos (1934-2018).

A OCC já formou cerca de 700 alunos entre 7 e 21 anos, do Coque, Recife, e do distrito de Camela, na cidade vizinha de Ipojuca. “O objetivo principal da orquestra é a formação da cidadania, dos valores que guarnecem um bom caráter. É dar a possibilidade de a pessoa trabalhar com a esperança, passar a nutrir a esperança”, afirma Targino.

Para ele, a formação de profissionais vem em segundo plano, mais como uma forma de dar oportunidades de trabalho aos alunos que passam pela iniciativa. “80% dos nossos alunos ingressaram na vida musical e 20% seguiram outros caminhos”, exemplifica.

Os frutos que brilham, e batalham por espaço, no exterior

Um dos frutos mais proeminentes da OCC é o contrabaixista Antonino Tertuliano, que desde 2024 vive em Salzburgo, na Áustria, integra a Niederbayrische Philharmonie Orchester e cursa mestrado na Mozarteum University Salzburg. Tertuliano se encantou com a música erudita em 2006, quando a OCC fez uma visita à escola em que estudava, no Coque, para apresentar os instrumentos de corda.

Era o primeiro contato dele com esse tipo de música. Adolescente, ele ingressou nas aulas e, menos de cinco anos depois, já foi aprovado para integrar a Orquestra Sinfônica de Goiânia. Em ascensão, depois de quatro temporadas em Goiás, ele recebeu o convite para estudar em Israel, onde integrou a Orquestra Filarmônica de Israel até o final de 2023.

“Quando comecei, eu custava bastante em sentar e prestar atenção. A música me fez querer ter disciplina e passar horas e horas aqui, estudar seis a oito horas por dia”, conta Tertuliano, que tampouco tinha sonhos de um dia viver e trabalhar como músico fora do Brasil. “Em Goiânia, tive contato pela primeira vez com músicos que haviam passado um período no exterior. Ao ver o nível técnico deles, uma semente foi plantada.”

Diferente de Tertuliano, a violista Palloma Izidio já tinha contato com a música erudita quando se tornou aluna no Baccarelli. De Barra Mansa, no Rio de Janeiro, Izidio entrou nas aulas de musicalização infantil aos três anos, pois era muito tímida na infância, com a ajuda financeira de uma tia. Aos nove anos, ela começou a estudar violino em um projeto social da região onde morava e depois se apaixonou pela viola.

“Meu avô costumava escutar música clássica para desestressar no trânsito, mas ele não fazia música, não tocava. O samba era forte na minha família, quando ele era jovem, era diretor de harmonia de uma escola de samba”, conta Izidio.

Desde sempre, ela sabia que queria seguir carreira profissional na música e em contato com um professor recebeu o convite para ir estudar no Baccarelli. “Lá, eu pude levar a sério, realmente focar”, diz. Foi também no Baccarelli que Izidio foi incentivada a estudar fora do país. Durante uma aula virtual, ela conheceu Marc Sabbah, do Conservatório Real de Mons, na Bélgica, e foi convidada para estudar lá.

A violista se mudou para a Bélgica há cinco anos, onde fez bacharelado e hoje em dia cursa mestrado. “Eu sou realmente fruto da minha comunidade. Claro, eu estudo muito, sempre fui muito dedicada, sempre quis tudo isso, mas em termos práticos, eu não tinha as condições sociais e econômicas para estar onde estou hoje”, afirma.

Izidio diz que sente como diferenciais de estar fora o fato de como a sociedade valoriza os musicistas e também a estrutura existente para estudar. Desde que chegou, teve a oportunidade de tocar em prestigiadas salas de concerto, como o Teatro Real da Casa da Moeda e o Conservatório Real de Bruxelas.

Sonhos para o futuro

Entretanto, tanto ela quanto Tertuliano sabem que os desafios para permanecer na Europa são muitos. Por isso, sempre que pode, Tertuliano visita a sede da OCC no Recife ou participa de tours com o grupo, como a tour Concertos pela Paz, que reuniu 11 estudantes da OCC e músicos da Rússia, Ucrânia, Irã, Palestina, Israel, Coreias do Sul e do Norte entre o fim de setembro e o início de outubro.

“Eu gosto de voltar para me reenergizar, me conectar com a minha raiz e ver nos olhos dos mais jovens a admiração de ter um ídolo. Quando eu comecei, eu tinha ídolos, mas que não tinham o mesmo ponto de referência que o meu”, afirma ele, que pretende por enquanto seguir na Europa.

Izidio, por outro lado, planeja voltar ao Brasil. “Aqui tem muitas provas, audição de orquestra, que eu simplesmente não posso fazer porque eu não sou europeia. Então, por que ficar aqui se eu não vou poder trabalhar nesse alto nível que eu estou estudando agora?”, questiona ela, que ainda quer realizar outros cursos antes de voltar.

A violista também quer levar os professores belgas para conhecer o Baccarelli e tocar com os alunos que estão lá. É uma forma de retribuir ao projeto as oportunidades que teve. “Eu não quero ser uma inspiração, pois pessoas como eu não precisam de exemplo, elas precisam de oportunidades como a que eu tive”, conclui Izidio.