Tribunal deve julgar nesta terça recurso do Ministério Público para anular decisão que colocou os réus em liberdade. Incêndio matou 242 pessoas.Mais de dez anos após o incêndio na boate Kiss que matou 242 pessoas em Santa Maria (RS), ninguém está preso. A expectativa dos sobreviventes e dos familiares das vítimas em ver os quatro réus cumprindo penas de prisão de até 22 anos esvaiu-se em agosto de 2022, quando o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), por 2 votos a 1, anulou o júri que os havia condenado.

Agora, o destino do caso está nas mãos do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que analisa nesta terça-feira (13/06) um recurso apresentado pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) que pede a anulação da decisão do TJ-RS – ou seja, que o júri siga válido e que os réus cumpram as penas a que foram condenados.

A Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) confia em que o voto do relator do caso no TJ-RS, desembargador Manuel José Martinez Lucas, contrário às nulidades, prevaleça e o júri seja mantido pelo STJ. No entanto, a maioria dos especialistas ouvidos pela DW acha pouco provável que isso ocorra.

Em agosto de 2022, Lucas votou pela rejeição de todas as nulidades apresentadas pela defesa dos réus, mas foi vencido pelos votos dos desembargadores José Conrado Kurtz de Souza e Jayme Weingartner Neto, que reconheceram parte delas. Assim, foi revogada a prisão dos sócios da Boate Kiss, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, do vocalista da Banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, e do auxiliar do grupo musical, Luciano Bonilha Leão, que estavam presos desde dezembro de 2021, após o encerramento do júri em Porto Alegre.

O que dizem os especialistas ouvidos pela DW

Uma das nulidades apontadas pela defesa dos réus que justificou a anulação da condenação foi a antecedência com a qual o sorteio dos jurados foi feito. A lei determina que esse sorteio seja feito no mínimo dez dias úteis antes do júri.

No caso da Kiss, foram feitos três sorteios, o último deles apenas quatro dias úteis antes do início do julgamento. A defesa aponta que isso fere a lei e impediu que os advogados pudessem analisar cada um dos nomes sorteados, a fim de solicitar algum eventual afastamento, por impedimento ou possível parcialidade.

Márcio de Souza Bernardes, professor de direito da Universidade Franciscana de Santa Maria (UFN), afirma que embora não seja possível classificar uma nulidade como mais grave do que a outra, esse ponto do sorteio do júri viola a “paridade de armas” que permite que um julgamento seja imparcial.

“Entendo completamente a angústia dos pais [das vítimas], mas, do ponto de vista técnico, o júri deve ser anulado. São elementos graves e, a rigor da lei, de direitos e garantias, deve ser anulado”, diz.

Ele cita também a inclusão de uma maquete em 3D da boate Kiss ao processo fora do prazo previsto em lei, apenas três dias antes do julgamento. “A maquete precisava de um programa específico para ser vista, o qual seria de difícil acesso pela defesa devido a sua particularidade”, ressalta.

Lenio Luiz Streck, ex-procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, também identifica condutas irregulares no júri e acredita que o STJ deve manter a sua anulação. “Muitos se surpreenderam com a anulação pelo TJ-RS, mas as nulidades apresentadas são muito graves, não poderiam ter ocorrido”, diz Streck, ressaltando que o MP-RS cometeu irregularidades que resultaram na quebra da isonomia.

Streck pondera que, embora a nulidade do júri afete a capacidade de as famílias encerrarem seu luto, o procedimento do TJ-RS foi correto. “O sistema não está errado, qualquer democracia tem regras que servem para todo mundo. Todos têm direito a um julgamento, mesmo quem causa a morte de 242 pessoas”, frisa.

Entre os erros cometidos no julgamento, Streck destaca o fato de o MP-RS ter tido acesso a um sistema interno – ao qual a defesa não teve – e pelo qual podem ser consultadas informações não públicas sobre os jurados. No entanto, ele avalia que um sistema judiciário no qual um caso trágico segue sem respostas após dez anos mostra falhas.

O advogado Aury Lopes Jr, professor de direito processual penal da PUC-RS, também entende que erros foram cometidos na condução do julgamento tanto pelo juiz quanto pelo MP-RS, mas que a decisão do STJ é uma incógnita. “Eu diria que, no STJ, é uma bola ao centro”, afirma.

Para ele, uma conduta “gravíssima” foi o fato de o juiz Orlando Faccini Neto ter se reunido a portas fechadas com o júri, sem a presença do Ministério Público e da defesa. “Essa é insuperável. É inadmissível. Nunca saberemos o teor dessa conversa”, diz.

Familiares das vítimas confiam no voto do relator

Enquanto o processo se arrasta, do lado dos sobreviventes da tragédia e dos familiares das vítimas a expectativa é que a anulação do júri seja revertida, e a AVTSM vem realizando vigílias em Brasília (DF) para pressionar nesse sentido.

“A associação confia que o STJ vá seguir o entendimento do relator do TJ-RS”, diz Pedro Barcellos Jr, advogado da AVTSM há cerca de oito anos.

Cibele Garlet Facco, mestre em Direito e mãe de uma das vítimas da Kiss, compartilha dessa opinião e acredita que o STJ pode se ater à decisão do relator, frisando que, em um julgamento desta magnitude, é muito difícil – “se não até improvável” – que nenhum equívoco ocorra.

“Eu, como mãe, quero que o STJ reverta essa decisão. Mas, como jurista, sei que, se isso ocorrer, pode abrir precedentes para outros julgamentos”, diz.

Facco fez sua dissertação de mestrado, no Uruguai, sobre o caso Kiss. A filha dela, Luana, tinha 19 anos quando morreu na boate, junto com outras cinco amigas. Com base em sua pesquisa acadêmica, Facco avalia que o MP-RS cometeu vários equívocos que macularam o processo, mas, caso um eventual novo júri ocorra, ela acredita que as chances de condenação dos réus diminuiria, visto que a passagem do tempo acarretou em uma certa “empatia popular” pelos quatro réus.

“Muitas outras pessoas deveriam estar sentadas naquele banco e não somente esses quatro, o que acaba prejudicando a forma como o público vê o caso e as condenações”, diz.

O que pode acontecer

Caso o STJ reverta a anulação e as penas sejam mantidas, ainda cabe recurso às defesas dos réus.

Mas, se o STJ acatar a decisão do TJ-RS, o júri será anulado e um novo deverá ser convocado. Um outro recurso já foi apresentado ao STF, mas, na opinião dos especialistas ouvidos pela DW, seria contraproducente esperar essa decisão ou apresentar um novo recurso à corte, visto que o caso não tem previsão de quando seria analisado, o que poderia levar anos – e sob o risco de a anulação ser mantida.

“Não acho que seria prudente se arrastar mais. Quanto mais o processo se prolonga, mais grave ficaria a questão desse tragic case, da transcendência do sofrimento. As famílias querem enterrar seus mortos e o Estado tem que passar a mensagem de que se preocupa com as vítimas. Do contrário, pode-se passar uma imagem de que a culpa é da vítima ou que todo o ocorrido foi obra do azar”, argumenta Streck.

Lopes Jr. também acredita que o MP não deva seguir esse caminho. “Se o MP-RS não recorrer ao STF, é possível que um novo júri ocorra ainda este ano”, analisa, destacando que desta vez “todas as precauções e cuidados devem ser tomados”.

Na visão de Bernardes, esse eventual novo júri ocorreria, mais uma vez, em Porto Alegre, já que o desaforamento, ou seja, a transferência do júri de Santa Maria para Porto Alegre, permaneceria.

O advogado da AVTSM tem uma visão diferente. No entendimento de Barcellos Jr, se a confirmação da anulação do júri ocorrer, não está claro o que pode acontecer. Por exemplo: se toda a segunda fase do processo seria reiniciada.

“Se for anulado só o plenário, nós vamos ouvir as mesmas pessoas arroladas, ou seja, serão as mesmas testemunhas, as mesmas vítimas, os mesmos peritos e os mesmos sobreviventes? Ou anula-se o desaforamento também e o processo volta para Santa Maria?”, questiona.

Ele cita ainda o ônus financeiro aos cofres públicos para a realização de um novo júri e, acima de tudo, o ônus psicológico para os sobreviventes e familiares das vítimas, que teriam, mais uma vez, de reviver a trágica madrugada de 27 de janeiro de 2013.

Espera por justiça

Gabriel Rovadoschi Barros, presidente da AVTSM e sobrevivente da Kiss, ficou oito anos sem conseguir falar sobre a tragédia e agora é a voz dos que não têm mais forças para se pronunciar.

“Essa demora em fazer justiça não nos deixa viver nosso luto e seguir com as nossas vidas de forma plena. As pessoas estão adoecendo ao longo desses dez anos e não só fisicamente em consequência das sequelas deixadas pelo incêndio, mas mentalmente, pelo desgaste diário em buscar justiça”, diz.

“Enquanto a justiça não é feita, é como se aquilo tudo estivesse somente na minha memória. O que queremos é que a justiça ocorra, para que a história seja escrita, para que esse peso saia das nossas costas”, afirma. Segundo ele, as vítimas da tragédia da Kiss até hoje não receberam nenhuma indenização financeira e já não recebem apoio médico ou com medicamentos.

“No fim, quem está cumprindo a pena somos nós, os pais das vítimas e os sobreviventes da Kiss, que não conseguimos ver a justiça ser feita”, diz Cibele Garlet Facco, mãe de uma das vítimas.

O que diz o MP e a defesa dos réus

Procurado pela DW, o MP-RS disse não vai se manifestar até o julgamento do recurso.

A defesa de Marcelo de Jesus dos Santos espera que seja confirmada a decisão do TJ-RS, e diz que as nulidades reconhecidas foram absolutas e incontestes e contaminaram todo o julgamento.

O advogado de defesa de Luciano Bonilha Leão, Jean Severo, disse que tem “convicção” de que a anulação do júri será mantida “porque são muitas nulidades”, sendo as principais o fato de o juiz ter se reunido de forma privada com o júri e o sorteio dos jurados fora do prazo, “violando o Código de Processo Penal”.

A defesa de Mauro Londero Hoffmann disse ter “convicção da necessidade da manutenção da decisão que anulou o júri, considerando-se que os vícios do julgamento foram gravíssimos, contaminaram sua transparência e afetaram inquestionavelmente sua imparcialidade”.

A defesa de Elissandro Callegaro Spohr não havia se pronunciado até a publicação dessa reportagem.