26/06/2025 - 10:54
Quem sofre o racismo costuma ter sua subjetividade reduzida a números e estatísticas. Por isso, decidi mudar o rumo dessa prosa e falar de Dona Maria Poeta que realizou seu sonho de vida aos 88 anos.Não é a primeira vez que penso num tema para a coluna Negros Trópicos, e que decido mudar o percurso a ser seguido. Geralmente, essa mudança de rota está vinculada a algum fato ou episódio mais drástico, frequentemente por alguma ação absurda e/ou violenta do racismo brasileiro. Mas dessa vez a história foi um pouco diferente.
Minha ideia inicial era explorar a longa e consolidada relação entre o racismo e o humor no Brasil, uma questão muito bem debatida por Adilson Moreira no seu livro Racismo Recreativo. O mote dessa minha discussão foi a condenação do humorista Léo Lins a 8 anos e 3 meses de prisão, além de multa de cerca de R$ 1,4 milhão e indenização de R$ 303.600 por danos morais coletivos.
A condenação foi uma resposta judicial que entendeu que o comediante praticou crimes previstos na Lei nº 7.716/89 (racismo) e no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) ao proferir piadas ofensivas contra diversos grupos marginalizados, incluindo negros, indígenas, pessoas com deficiência, homossexuais, judeus, nordestinos, idosos e portadores de HIV, em seu show de stand-up no final de 2022, cujo vídeo teve milhões de visualizações no YouTube.
Menos do que a condenação, que considero acertada e um avanço do sistema jurídico brasileiro – que por décadas teve uma série de entraves para julgar crimes de injúria racial e de racismo –, o que eu gostaria mesmo era olhar com mais atenção para o polêmico debate que se estabeleceu sobre a liberdade de expressão. Liberdade essa que para muitos seria um salvo-conduto para qualquer um dizer o que quiser, mesmo que isso fira os princípios da nossa legislação.
Mas enquanto em colhia mais informação sobre a condenação em meio ao nosso longo e hipócrita debate sobre liberdade de expressão, fiquei pensando que uma coluna inteira sobre esse caso faria aquilo que grande parte da mídia e da opinião pública brasileira adora fazer quando o tema central é o racismo: vitimizar seus algozes.
Não me surpreenderia em nada caso Léo Lins se livre dessa condenação (pois ainda cabem recursos), como amplie seu número de seguidores e seja alçado ao posto de mártir pelos fervorosos defensores da liberdade de expressão – sobretudo quando essa liberdade não tem o mesmo peso nem a mesma medida para negros, indígenas, homossexuais, PCDs.
Fiquei pensando em como o racismo, sobretudo o recreativo, cria uma demanda na qual o racista é sempre o sujeito mais importante, o foco de todos os holofotes, a pessoa que em última instância continua tendo sua humanidade resguardada, ao passo que os que sofrem essa violência têm suas subjetividades reduzidas a números e estatísticas. Então, eu decidi mudar o rumo dessa prosa e os sujeitos da minha narrativa, e falar de uma coisa bonita que testemunhei na última Bienal do Livro do Rio de Janeiro.
Realização de sonho de uma vida
No dia último dia 15 de junho, eu presenciei o lançamento do primeiro livro de Maria Mariano, conhecida como Dona Maria Poeta. Algo que pode ser óbvio, por se tratar de uma Bienal do Livro, mas que ganha outros contornos quando sublinhamos que Dona Maria é uma mulher negra de 88 anos que cursou até a segunda série do ensino primário e que sempre sonhou ser poeta.
Um sonho que foi acalentado durante uma vida inteira, que atravessou a criação dos seus filhos e netos, algo que nunca é fácil quando se trata de mulheres negras brasileiras. Em meio a todas as batalhas vividas por Dona Maria, estavam seus versos escritos em pedaços de papel, em guardanapos, em cadernos que eram só seus e que por um tanto de tempo ficaram (res)guardados, acalentando o olhar doce e generoso que Dona Maria Poeta lançou e lança sobre o mundo.
Eu vi uma mulher negra de 87 anos ver o seu sonho realizado. Eu a ouvi dizendo que quer mais, que anseia novos futuros, que deseja tempo para mais versos e mais poesia, a dela, principalmente.
E como a beleza também pode transbordar, quem estava ao lado dela, compartilhando a felicidade e a realização do sonho de uma vida inteira, era sua neta, a atriz Clara Moneke, que muito segura de onde veio e tendo aprendido com quem sabe, deu as mãos para sua avó e nos mostrou aquilo que por vezes somos obrigados a não enxergar ou a esquecer: o belo e humano que os homens e mulheres negros carregam e constroem.
E tudo isso foi contado para uma plateia que tinha a cara do Brasil. Numa Bienal cheia de gente, com muitos livros, autores e leitores, eu pude ver que a simplicidade não é uma boia salva-vidas, mas um caminho de felicidade para tantas pessoas, inclusive e sobretudo as negras.
Ali, presenciei a força e a importância de contarmos outras histórias, de conhecermos outros sujeitos, de sonharmos outros sonhos e de fazer da diversidade um compartilhar inegociável. Uma sabedoria que, não por acaso, veio dos versos e da voz firme e calma de Dona Maria Poeta, que muito bem nos disse:
Problemas da vida
Problemas do amor
Mesmo com problemas
Sou um sonhador.
Com os pés no chão
Tento caminhar…
Olhando pra frente
Não penso em voltar […]
(Maria L.P. Mariano. Problemas. In.: Alma de Poeta, São Paulo, 2024, p. 21)
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.