01/03/2010 - 0:00
Na “guerra total” promovida pelo Paquistão contra o Talebã e a Al-Qaeda, o governo do presidente Asif Ali Zardari quer cercar as madrassas, as escolas corânicas acusadas de ser solo fértil para jihadistas. Essas instituições estão sob fogo cerrado em virtude de sua alegada influência no espírito da militância extremista. Mesmo assim, todas elas ainda estão fora do controle do governo.
As madrassas têm uma longa história no Paquistão e nas sociedades muçulmanas em geral. Bancadas pela filantropia pública, elas oferecem gratuitamente educação religiosa, alojamento em regime de internato e alimentação, e são essencialmente escolas para os pobres. Hoje em dia, mais de 15 mil madrassas – de cinco seitas diferentes e que não se misturam – compõem o setor educacional religioso no Paquistão. Cerca de 1,5 milhão de crianças as frequentam. Mas a visão de mundo limitada de seus líderes, sua falta de educação cívica moderna e a pobreza fazem das madrassas um fator de desestabilização na sociedade paquistanesa. Por essas razões, essas escolas também estão suscetíveis a noções românticas de sectarismo e jihads internacionais, que prometem salvação instantânea. Boa parte dos clérigos formados nessas instituições prega a guerra santa assim que obtém seu diploma.
Reformar as madrassas foi a peça central da estratégia de contraterrorismo do regime militar que governava o Paquistão logo depois do 11 de Setembro. Um projeto de lei foi anunciado em junho de 2002 para regulamentar, modernizar e integrar as escolas corânicas à educação convencional, ao custo de cerca de US$ 100 milhões. A lei proposta pelo governo, então comandado pelo general Pervez Musharraf, daria suporte a mudanças no currículo, no registro e no monitoramento de finanças. Mas o nome desse projeto – Regulamentação e Registro Voluntário – já dava uma ideia da falta de envolvimento concreto do governo com a reforma. Em vez de comprometer-se com uma intervenção real no sistema das madrassas, ao qual o clero se opunha ferozmente, as escolas seriam apenas solicitadas a submeter-se à regulamentação por conta própria, sem a previsão de quaisquer mecanismos de fiscalização ou de punição por violações.
Acima, alunos de madrassa em Muzafarabad (Caxemira paquistanesa) estudam o Alcorão e muro de escola pichado com palavras de ordem contra os Estados Unidos. Muitas madrassas defendem o extremismo islâmico.
O núcleo do projeto de reforma para as madrassas era um novo currículo. O governo se comprometeu a modernizá-lo, acrescentando cursos de inglês, matemática, estudos paquistaneses, ciências e estudos sociais em vários níveis. O objetivo ambicionado era dar às escolas corânicas uma educação mais próxima da formal. O governo também havia prometido cobrir os custos de livros e dos novos professores para assuntos não religiosos, treinamento dos mestres, materiais de biblioteca, computadores e outros artigos. Qualquer madrassa adequadamente registrada junto ao governo poderia requisitar assistência.
O fracasso do projeto não poderia ter sido mais retumbante – ou a falta de vontade do governo de implementar a reforma das madrassas mais evidente – do que o que se viu no drama de seis meses protagonizado pelos mulás da Mesquita Vermelha, em Islamabad (a capital do país), e suas escolas afiliadas. A tragédia – encerrada em julho de 2007, com a invasão do complexo da mesquita por tropas do governo – foi iniciada com uma campanha agressiva dos clérigos locais e de estudantes a favor da adoção da lei islâmica na capital paquistanesa. A atitude desafiadora era agravada por sequestros de policiais e moradores de Islamabad que os rebelados consideravam envolvidos em atividades “não islâmicas”. Depois de várias semanas de contemporização do governo, o Exército paquistanês enfim desfechou um ataque contra os radicais entrincheirados na mesquita. A ação militar, que durou 36 horas, resultou na morte de mais de 100 pessoas.
Desarmar as escolas radicais estava no topo da agenda do governo em termos dos planos de reforma. Como o impasse da Mesquita Vermelha mostrou, porém, o desarmamento não foi muito longe. Até mesmo nas madrassas da capital, Islamabad, as armas e os explosivos continuam a circular livremente. As armas, aliás, se tornaram uma parte da cultura das madrassas, pertençam elas a essa ou àquela seita. A maioria das escolas radicais tem ligações diretas ou indiretas com organizações de militantes à margem da lei. Se o governo eventualmente decidisse desarmar as madrassas, haveria uma tenaz resistência. O Paquistão também teria de integrar-se, formalmente e por completo, à Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento do Terrorismo.
Meninas matriculadas em madrassa de Muzafarabad. Mais de 1,5 milhão de crianças, predominantemente pobres, frequentam essas escolas no Paquistão.
Em junho de 2008 – dois meses antes da renúncia do general Musharraf à presidência -, seu ministro da Educação anunciou que não concederia nenhum recurso adicional para reformas curriculares e fornecimento de material às madrassas até que as administrações dessas escolas assinassem um acordo com o governo para cumprir os termos estipulados de registro e regulamentação. Os líderes da organização que reúne essas instituições se recusaram a aceitar a imposição e, assim, o programa de reformas fracassou antes de decolar. Com dificuldades para firmar-se no poder, o governo do sucessor de Musharraf, o civil Asif Ali Zardari, não adotou posições mais agressivas a respeito das madrassas e, atualmente, tem de concentrar suas forças em outro tema mais urgente: a guerra que move contra a versão paquistanesa do Talebã no noroeste do país.
De qualquer maneira, cursos de educação secular só teriam valor no Paquistão se fossem acompanhados de mudanças fundamentais no currículo religioso de todas as seitas para encerrar a promoção do sectarismo e da intolerância religiosa, que é a razão de ser original das madrassas. Enquanto isso, a paciência do povo paquistanês, cansado de fundamentalismos, está-se esgotando.