17/09/2024 - 18:13
Em carta aberta, mais de 150 artistas e intelectuais judeus dizem temer que projeto de resolução no Parlamento alemão para proteger a vida judaica esteja focando nas pessoas erradas.Em novembro de 2023, uma exposição da artista sul-africana radicada em Berlim Candice Breitz foi cancelada pela galeria de arte moderna do Museu do Sarre. Os organizadores decidiram evitar a associação com Breitz, alegando que ela havia assinado uma carta do movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), rotulado pelo governo da Alemanha de antissemita, e que ela não havia condenado os ataques terroristas de 7 de Outubro do Hamas.
Ambas as alegações são falsas, Breitz repetiu várias vezes desde então, também num painel de discussão sobre o impacto da posição da Alemanha em relação ao BDS, realizado em 8 de setembro no Festival Internacional de Literatura de Berlim: embora apoie o direito democrático de boicotar, ela não é uma apoiadora do BDS e nunca assinou nenhuma carta do movimento.
Antes mesmo da decisão do museu, a artista havia escrito no Instagram que “é possível condenar totalmente o Hamas (como eu faço, inequivocamente) e, ao mesmo tempo, apoiar a luta palestina mais ampla pela liberdade da opressão, discriminação e ocupação”.
Algo mais tornou o caso de Breitz particularmente emblemático: ela é judia.
“Posso carregar a duvidosa distinção de ser a primeira artista judia a ser desplataformizada e desfinanciada pela Alemanha, mas não sou a primeira judia a ser afetada”, disse Breitz quando a polêmica eclodiu. “Um amplo espectro de ativistas, artistas e outros trabalhadores culturais está sendo coberto de piche e penas com grande pressa e com zelo macarthista.”
Desconvites e rapidez nas acusações
Depois que o Bundestag (Parlamento alemão) aprovou uma resolução condenando o movimento BDS como antissemita, em 2019, diversas instituições culturais da Alemanha desconvidaram personalidades ou ganhadores de prêmios, tentando preventivamente evitar controvérsias e acusações de antissemitismo.
O fenômeno tornou-se mais pronunciado após o início da guerra entre Israel e Hamas, após o ataque do grupo radical palestino que custou a vida de 1.200 israelenses e resultou no sequestro de outros 250.
Houve casos de pessoas que criticaram publicamente as ações de Israel na Faixa de Gaza sem incluir uma condenação direta ao Hamas e acabaram sendo acusadas de antissemitismo. O cineasta israelense Yuval Abraham e o diretor palestino Basel Adra passaram por essa experiência no Festival de Cinema de Berlim, em fevereiro, após criticarem o governo de Israel em seu discurso de aceitação do prêmio de melhor documentário.
Abraham, que sofreu ameaças de morte em Israel após as acusações, acusou as autoridades alemãs de desvalorizarem o termo antissemitismo. “A Alemanha está usando como arma um termo que foi criado para proteger os judeus [e está fazendo isso] não apenas para silenciar os palestinos, mas também para silenciar os judeus e israelenses que criticam a ocupação”, disse Abraham.
Avisos semelhantes foram feitos pela Diaspora Alliance, uma organização internacional liderada por judeus, dedicada a desafiar a instrumentalização do antissemitismo e a combater o que eles identificam como antissemitismo genuíno.
Alemães acusam judeus de antissemitismo
A Diaspora Alliance está compilando uma lista dos casos de censura ou desplataformização na Alemanha relacionados a alegações de antissemitismo. Os dados, que deverão estar online em 2025, mostram não apenas que palestinos e a comunidade mais ampla de muçulmanos e de árabes foram os mais diretamente afetados pela postura específica da Alemanha, mas também que um número altamente desproporcional de judeus foi afetado.
Nos 84 casos de desplataformização ou cancelamento de eventos documentados pela Diaspora Alliance em 2023, indivíduos judeus ou grupos incluindo judeus foram alvos em 25%, declarou à DW a diretora da filial alemã da organização, Emily Dische-Becker. Como ressalva, ela observou que, sendo uma organização dirigida por judeus, eles possivelmente estão mais bem informados sobre casos que afetam judeus, que representam menos de 1% da população da Alemanha.
Uma definição controversa de antissemitismo
A resolução do Bundestag sobre o BDS baseia-se na chamada “definição prática” de antissemitismo estabelecida pela Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA), que é frequentemente criticada por rotular de antissemita o que outros considerariam uma crítica legítima a Israel.
A definição da IHRA inclui “efetuar comparações entre a política israelense contemporânea e a dos nazistas” e “negar ao povo judeu seu direito à autodeterminação, por exemplo afirmando que a existência de um Estado de Israel é um empreendimento racista”.
Mesmo o principal autor da definição da IHRA, o advogado americano Kenneth Stern, se opõe a usá-la como base de qualquer ferramenta jurídica. Essa posição é apoiada por uma ampla gama de estudiosos do antissemitismo, como afirma a Diaspora Alliance, que recomenda uma definição alternativa, a Declaração de Jerusalém sobre Antissemitismo, que existe desde 2021.
Ainda assim, o Bundestag está elaborando outra resolução com base na definição da IHRA, intitulada “‘Nunca mais’ é agora: Protegendo, preservando e fortalecendo a vida judaica na Alemanha”.
Devido ao seu passado nazista, entre outros motivos, a Alemanha se vê na responsabilidade histórica de apoiar Israel.
Mais de 150 judeus criticam projeto do Bundestag
Em agosto, uma carta aberta assinada por artistas e intelectuais judeus foi publicada no jornal alemão Taz. Desde sua publicação, ela reuniu mais de 150 signatários. Nela, eles expressam uma profunda preocupação com o projeto de resolução, que “afirma proteger a vida judaica na Alemanha, mas promete colocá-la em perigo”.
A carta diz que um dos problemas do projeto é que ele “está focado em artistas, estudantes e migrantes como os mais perigosos perpetradores de antissemitismo no país, sugerindo que a ameaça mais urgente aos judeus vem de pessoas associadas à política de esquerda e daqueles que vêm de fora da Alemanha”.
“Essa é uma distorção maliciosa da realidade, que se baseia na falsa equiparação entre antissemitismo e qualquer crítica ao governo israelense. Como judeus, rejeitamos em especial a insinuação da resolução de que o antissemitismo foi importado por migrantes para a Alemanha, o berço do nazismo.”
“Bom judeu” e “mau judeu”
Stefan Laurin, editor do Ruhrbarone, um blog cujas reportagens sobre acusações de antissemitismo provocaram controvérsias que levaram a vários cancelamentos – e que é conhecido por ter publicado um meme inflamado promovendo a aniquilação de Gaza –, também foi convidado para o painel de discussão do Festival Internacional de Literatura de Berlim.
Como Breitz apontou durante a discussão, o artigo de reação de Laurin à carta assinada por mais de 150 intelectuais e artistas evitou mencionar que os signatários eram judeus. Ele se referiu vagamente a eles como sendo parte “da parcela antissemita da cena cultural”.
Na discussão, Laurin tentou justificar seu trabalho citando o editor-chefe do semanário judaico-alemão Jüdische Allgemeine, Philipp Peyman Engel, que disse numa entrevista ao jornal alemão Die Welt que os muçulmanos e os esquerdistas radicais eram uma ameaça antissemita mais importante do que a extrema direita.
Muitos judeus não concordam com ele, inclusive os signatários da carta, que veem as coisas de forma inversa: “Não tememos nossos vizinhos muçulmanos nem nossos colegas artistas, escritores e acadêmicos. Nós tememos a extrema direita em ascensão, como evidenciado pelas manifestações em massa de neonazistas encorajados por um clima nacional de medo xenófobo. Tememos a Alternativa para a Alemanha, o segundo partido político mais popular do país, cujos líderes conscientemente copiam a retórica nazista. Essa ameaça mal é mencionada na resolução.”
“Os judeus são tão diversos politicamente quanto todas as outras pessoas”, apontou Breitz em reação ao fato de Laurin favorecer a opinião de Engel em detrimento da opinião expressa publicamente por mais de 150 outros judeus. Ela criticou a abordagem seletiva dele como sendo parte de uma dinâmica preocupante na Alemanha, onde uma distinção entre “bons judeus” e “maus judeus” é criada para suprimir vozes dissidentes.
Essa categorização também foi fortemente condenada pelo professor britânico-israelense Eyal Weizman numa entrevista publicada na edição de novembro de 2023 da revista Granta: “Mais uma vez, a Alemanha define quem é judeu, certo?”, disse ele. “A ironia de que é o Estado alemão quem vai classificar quem é judeu, o que é uma posição judaica legítima e como os judeus devem reagir é simplesmente desprezível.”