Se você verificar com atenção o rótulo de todos os produtos que consome, vai descobrir, de repente, que o mundo é feito de glúten – proteína naturalmente presente no trigo, no centeio, na cevada e no malte (que é obtido a partir da cevada). Mas, graças à contaminação cruzada, a qual pode ocorrer do plantio ao preparo da comida, é possível também encontrá-lo em uma infinidade de alimentos, como fubá, aveia e achocolatados.

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Como o glúten é altamente tóxico para portadores da doença celíaca (DC) – enfermidade autoimune que agride o intestino delgado e impede a absorção de nutrientes fundamentais para o nosso organismo –, desde 2003, por determinação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o rótulo dos alimentos industrializados vendidos no Brasil deve informar, obrigatoriamente, a presença ou não dessa substância em sua composição.

Mas será que essa medida, por si só, garante segurança total aos celíacos? Essa e outras perguntas são aqui respondidas pelo dr. Fernando Valério, gastroenterologista, nutrólogo e especialista em doença celíaca e glúten, alergias e intolerâncias alimentares. Valério é membro da International Society for the Study of Celiac Disease.

Dr. Fernando Valério. Crédito: arquivo pessoal

“Quadro mais comum em crianças é o crescimento e desenvolvimento físicos retardados”

Entre os problemas de saúde relacionados ao glúten, a doença celíaca (DC) é considerada a mais grave. Por quê?

Sim! O glúten está relacionado a três quadros principais: a doença celíaca, a sensibilidade ao glúten não celíaca e a alergia ao glúten. Dessas três, a doença celíaca é a mais grave por gerar quadros de desnutrição e má absorção de nutrientes, doenças autoimunes associadas (hepatite, diabetes tipo 1, tireoidite, estomatite aftosa, lúpus, Síndrome de Sjögren, cardiopatia e neuropatia) e até mesmo câncer (linfoma, câncer de intestino, câncer de tireoide e câncer de esôfago). As alterações nutricionais geram quadros de anemia, osteoporose, infertilidade, queda de cabelos, unhas quebradiças, infertilidade e alteração do crescimento.

Que tipo de transtornos psiquiátricos e neurológicos essa doença pode provocar?

A doença celíaca é relacionada a quadros de depressão e alterações neurológicas conhecidas como “nuvem cerebral” (brain fog). Na “nuvem cerebral” há sintomas de perda de foco visual, visão “embaçada”, fadiga, dor de cabeça, irritabilidade, alterações de raciocínio, retenção de informações e alterações de memória. Mas ela também está relacionada à ataxia, que é uma alteração cerebral ligada à perda de equilíbrio.

A DC se manifesta, geralmente, em crianças de 1 a 3 anos, quando elas começam a consumir pães e bolachas, por exemplo. Que sintomas devem acender o sinal de alerta nos pais?

Crianças, assim como os adultos, podem apresentar sintomas digestivos como diarreia, dor abdominal, aumento de gases e constipação. Mas o quadro mais comum nessa faixa etária é o crescimento e desenvolvimento físicos retardados em comparação com crianças da mesma idade.

“Em pacientes sintomáticos, espera-se uma boa melhora da sintomatologia em até 12 meses”

Quanto tempo depois de deixar de consumir glúten o paciente fica livre desses sintomas?

Isso é variável, já que alguns pacientes nem mesmo apresentam sintomas. Mas, naqueles sintomáticos, espera-se uma boa melhora da sintomatologia entre 3 e 12 meses.

É possível alguém ser celíaco e não manifestar alterações orgânicas evidentes que levariam a um diagnóstico da doença?
Sim. Os pacientes celíacos são divididos em três grupos principais de acordo com a sua sintomatologia. Os sintomáticos clássicos (sintomas digestivos evidentes), os sintomáticos atípicos (sintomas relacionados mais às doenças autoimunes) e os assintomáticos. Por isso, pessoas que não apresentam qualquer sintoma, mas têm parentes celíacos, devem passar por uma triagem.

Que exames podem detectar a DC?
A doença celíaca é diagnosticada através de exames de sangue e biópsia de intestino delgado, realizada através de endoscopia digestiva alta. Os exames de sangue mais utilizados são a antitransglutaminase tecidual IgA (mais sensível), o antiendomísio (mais específico) e a anti-gliadinadeamidada.

“Pacientes devem fazer reposição de vitaminas e minerais se estão com déficit desses nutrientes”

Quem é celíaco apresenta necessariamente intolerância à lactose?
Não!  A intolerância à lactose é um quadro comum da doença celíaca, mas não é exclusivamente uma consequência dela. A grande maioria dos pacientes intolerantes à lactose deixa de produzir uma enzima chamada lactase durante a vida e por isso não consegue digerir a lactose. É o que chamamos de intolerância à lactose primária. No caso da doença celíaca, o intestino inflamado e atrofiado não consegue produzir a lactase, gerando a intolerância à lactose secundária. A boa notícia é que, quando a doença celíaca é controlada, a produção da enzima pode voltar ao normal e os pacientes se tornam tolerantes.

Além de eliminar os alimentos que contêm glúten, o celíaco deve fazer alguma dieta especial, ingerir, por exemplo, determinado tipo de nutriente ou vitamina?
Os pacientes devem fazer reposição de vitaminas e minerais se estão com déficit desses nutrientes. Mas, em casos com intensa inflamação intestinal e com consequente incapacidade de absorção de alimentos, pode ser necessária a administração desses nutrientes por via intravenosa e intramuscular.

O simples contato com glúten ou o uso de produtos que contenham essa proteína, como maquiagem, pode prejudicar o celíaco?
Pode, sim. O paciente celíaco não pode ter contato mínimo com produtos que contenham o glúten, ainda mais quando esse contato é repetitivo. É preciso estar sempre atento à contaminação do glúten.

“Há uma maior preocupação e conscientização com a doença”

O número de celíacos aumentou nos últimos anos ou, com o avanço da medicina, a doença ficou mais evidente?
Na realidade, achamos que os dois eventos vêm ocorrendo. Há uma maior preocupação e conscientização com a doença, o que obviamente facilita o diagnóstico. Mas, ao mesmo tempo, percebemos um aumento do valor absoluto de novos casos. Sabemos que a doença é genética, que 30% a 40% das pessoas brancas apresentam alteração nos genes que a predispõem, mas ainda não entendemos o fator desencadeante. E esse é um ponto-chave que ainda precisamos entender.

Podemos dizer que, apesar de tudo, a DC ainda hoje é subestimada?
Sim, muito subestimada. Sabe-se que somente 15% desse grupo de pacientes foram diagnosticados. Ou seja, nós temos uma população enorme de pacientes celíacos sem diagnóstico, sofrendo com sintomas não esclarecidos e provavelmente desenvolvendo doenças autoimunes. O período de retardo entre o início dos sintomas e a confirmação do diagnóstico pode ser maior que cinco anos, mesmo em grandes centros urbanos.

Que outros problemas de saúde a intolerância e a sensibilidade ao glúten podem causar?

A intolerância ao glúten é um termo vago e não recomendo que seja usado como sinônimo de uma única doença. A intolerância ao glúten inclui os celíacos, os sensíveis ao glúten não celíacos e os alérgicos ao glúten. Quanto à sensibilidade ao glúten não celíaca, costuma causar sintomas digestivos semelhantes à doença celíaca, refluxo gastroesofágico e dispepsia, além de muitos sintomas neurológicos (nuvem cerebral).

“Vejo as dietas sem glúten com certa apreensão”

Dietas sem glúten são, digamos, a febre do momento. Como o senhor vê isso?
Com certa apreensão. Ao mesmo tempo que muitas pessoas consumindo um produto fazem com que a indústria de alimentos invista na sua comercialização – trazendo um aumento de opções para os pacientes que não podem realmente comer glúten –, ocorre uma banalização das doenças relacionadas a esse alimento. Essa tendência a acreditar que a dieta sem glúten é apenas uma opção alimentar pessoal e reversível não condiz com a realidade dos celíacos. Além de um enorme risco alimentar e de saúde para esse grupo de pacientes, ainda traz enorme frustração. Nenhum paciente celíaco gosta que acreditem que ele convive com uma alimentação mais cara, socialmente restritiva e de difícil acesso simplesmente para atender uma “tendência”.

Na sua opinião, a inscrição “Não contém glúten” é confiável?

Não! Estudos mostram que restaurantes que vendem pratos “sem glúten” têm índice de contaminação de 30% a 50% e que a indústria de alimentos, cosméticos e rações para animais pode vender produtos contaminados pelo glúten mesmo quando o rótulo diz o contrário. Por isso, é sempre importante verificar com a empresa que fabrica e comercializa o produto sobre a sua segurança, e principalmente discutir esses produtos em grupos de apoio.