Policiais matam 6.000 por ano no Brasil. Não adianta se indignar com o assassinato de Nahel, na França, e de, George Floyd, nos EUA, e fechar os olhos para a barbárie brasileira.No dia 17 de junho, a estudante de enfermagem Anne Caroline Nascimento Silva, de 23 anos, foi morta durante uma blitz policial em uma estrada na Baixada Fluminense (uma das regiões mais violentas do Rio de Janeiro). Os responsáveis por sua morte seriam policiais rodoviários, que teriam atacado o carro onde Caroline estava com o marido com dez tiros. Segundo o marido da estudante, os policiais fizeram sinal para que ele parasse, ele deu a seta e encostava o carro quando ouviu os disparos. Um policial envolvido no caso foi afastado e a ação está sendo investigada pela Polícia Federal.

Sim, a morte de Anne Caroline é tristemente parecida com o assassinato de Nahel, de 17 anos, imigrante de origem norte africana que foi morto pela polícia francesa no dia 26 de junho, também dentro do seu carro e durante uma blitz. O caso foi o estopim de manifestações e uma revolta violenta, que acontece em todo o país desde a semana passada.

A reação ao assassinato de Nahel lembra a onda de protestos que tomou conta dos Estados Unidos em 2020 com a morte de George Floyd, também assassinado pela polícia.

A morte de Caroline não gerou a mesma revolta. Para ser sincera, eu mesma só soube desse absurdo quando comecei a fazer pesquisa para escrever esse texto. É tão rotineiro que a polícia pratique crimes no Brasil que nem prestamos mais muita atenção quando um caso assim acontece.

Números absurdos

A polícia do Brasil mata, em média, mais de 6 mil pessoas por ano. A nível de comparação: ano passado, a polícia alemã matou dez pessoas. A da França, considerada muito violenta em relação aos países vizinhos, matou 39.

E o que estamos fazendo para mudar isso?

Nas redes sociais, vejo muitos conhecidos admirando o fato de o crime ter comovido toda a França. O presidente Emmanuel Macron, por exemplo, declarou que a morte de Nahel pela polícia era “indesculpável”. A mesma admiração tomou conta das redes na época do assassinado de George Floyd. Admiramos o fato de tantos americanos terem tomado as ruas.

Entendo e compartilho dessa admiração. Mas… por que nós (falo sobretudo dos brancos e privilegiados) não estamos fazendo nada em relação aos nossos 6 mil mortos anuais?

Não estou falando, de forma alguma, que não exista revolta e movimentos que lutam contra a violência policial no Brasil. Existem vários. As “Mães de Maio”, por exemplo, um grupo formado por mães de jovens assassinados pela polícia lutam por justiça há 17 anos. Quando nós, de classe média, vamos nos juntar a elas ou a outros movimentos que tentam combater essa barbárie?

Agatha e Genivaldo

As vítimas são tantas que nem sabemos os nomes delas. Lembramos apenas de algumas histórias terríveis, que geraram revolta, mas não o suficiente para causar qualquer mudança no cenário de guerra.

Só para citar alguns casos que nos chocaram e que deviam ter parado o país: em 2019, a menina Agatha Felix, de 8 anos, morreu devido a um tiro no Complexo do Alemão, perto da sua casa. Segundo sua família e testemunhas, o tiro teria sido efetuado pela polícia. Também no Rio, em 2019, o músico Evaldo dos Santos Souza foi morto depois que oficiais do exército dispararam 80 tiros contra seu carro. Na época, o então presidente Jair Bolsonaro chamou o caso de “incidente”.

Em 2022, eu estava de férias no Rio de Janeiro, minha terra natal, quando Genivaldo de Jesus foi morto pela Polícia Rodoviária Federal em Sergipe por sufocamento. Sim, ele morreu em uma espécie de câmera de gás, um instrumento de tortura. Na ocasião, fui com uma amiga à manifestação que pedia justiça para ele no centro do Rio de Janeiro.

No protesto, organizados por entidades do movimento negro, de favelas e de direitos humanos, estavam muitos jovens. Mas eles eram majoritariamente negros e periféricos. Não encontrei nenhum amigo da zona sul (a área mais privilegiada do Rio) no protesto. Fazia sol. Meus amigos preferiram ir à praia. “Eu já cansei de chamar as pessoas. Não adianta, elas não vêm”, disse minha amiga, que participa de movimentos sociais e vai a todas as manifestações importantes.

O perfil dos assassinados brasileiros é claro: a maioria das vítimas são jovens negros, do sexo masculino, visto como “suspeitos”. Nesse caso, vale lembrar, que mesmo um culpado não pode ser executado pela polícia. Não existe pena de morte no Brasil. E, mesmo se existisse, a pessoa precisaria ser julgada. O resto é barbárie.

Não é possível que a gente continue fechando os olhos para tanto racismo e tanta violência policial. Não adianta apoiar, do Brasil, a luta contra violência policial nos Estados Unidos ou na França e fechar os olhos para nossa tragédia. Seis mil mortos por ano. É preciso gritar o quanto isso é inaceitável.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.