15/02/2024 - 9:59
Sem glitter, nem mesmo a transcendência gerada pela folia é capaz de suspender a realidade: quem recolhe as toneladas de lixo carnavalesco são, na maior parte, homens e mulheres negros – o alto preço da sustentabilidade.Todo Carnaval tem seu fim.
E com ele toneladas e mais toneladas de lixo…
Não importa como você decidiu comemorar o seu Carnaval. Se decidiu cair na folia, lá estarão eles e elas, os catadores de latinhas. E quem olhou com atenção para as ruas das cidades brasileiras nestes quatro dias, percebeu que “Carnaval é cheio de cor, mas só uma cata latinha”. Essa frase do artista A Coisa Ficou Preta estampou um post que circulou muito nas redes sociais mais progressistas do país, traduzindo aquilo que já sabemos quase que “intuitivamente”, mas que foi confirmado por estudos do IPEA: os catadores são, na sua maioria, homens e mulheres negros.
É isso, nem mesmo a festa momesca e a transcendência que ela provoca conseguem alterar ou suspender a realidade: quem recolhe as toneladas e mais toneladas de latinhas tem uma cor específica, e não usa glitter.
Em artigo publicado no portal Mundo Negro em 12 de fevereiro de 2024, Priscila Arantes sublinhou questões fundamentais que acompanham a intrínseca relação entre catar lixo, a pertença racial desses sujeitos e as péssimas condições de trabalho em que eles estão. Dois em cada três catadores se autodeclararam negros ou pardos.
Precariedade é pouco para definir as condições de trabalho a que estão submetidos (tanto aqueles que se organizam em associações e cooperativas, como os que trabalham de forma autônoma) e, se isso não bastasse, nos últimos anos a renda mensal de catadoras associadas caiu drasticamente. Atualmente, muitas dessas trabalhadoras não conseguem tirar nem R$ 300 por mês, catando a mesma quantidade de lixo que, há três anos, lhes rendia um pouco mais do que um salário mínimo.
De acordo com o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), estamos falando das condições de vida de aproximadamente 800 mil pessoas, que são diretamente responsáveis por 90% da reciclagem de lixo no Brasil.
As pessoas cujo trabalho permite que o custo da reciclagem de alumínio caia pela metade, são as mesmas que, embora organizadas em cooperativas e tendo contratos assinados com algumas prefeituras do país, não têm previsão de quanto vão receber, e muitas vezes estão sujeitas a condições de trabalho que colocam sua saúde em risco por razões desnecessárias, como a falta de equipamento adequado para trabalhar.
Antes trabalho de escravizados, hoje invisível
O mais perverso disso tudo, é que vivemos numa era em que o princípio da sustentabilidade está em voga. Ainda bem. Afinal, é fundamental revisarmos os padrões de consumo e descarte das últimas décadas.
Mas, como sublinhado por Anita Cristina de Jesus, chefe da Divisão de Sustentabilidade, Acessibilidade e Inclusão do TRT-4 do Rio Grande do Sul, esse processo não pode simplesmente desconsiderar as questões que norteiam a vida dos catadores e catadoras, como se eles apenas fizessem parte do cenário que compõe o processo de reciclagem. Antes de mais nada é preciso enxergar esses homens e mulheres naquilo que são: trabalhadores.
Essa vem sendo a luta da maior parte dos catadores e catadoras, sobretudo aqueles que atuam no MNCR, como Alexandro Cardoso, o Alex Catador, importante liderança do movimento que recentemente concluiu uma etnografia na qual analisa e humaniza a vida e o trabalho dos catadores.
Um estudo que vale a pena ser lido, para que não esqueçamos do estigma histórico que acompanha pessoas negras e pobres que trabalham com a coleta de lixo e dejetos (lembremos que por muito tempo eram escravizados que faziam tais atividades), mas também para lembrar que, embora achemos reciclagem uma coisa bacana e importante, não temos muita ideia de como e onde esse processo se dá.
Sendo bem francos: a parte mais substancial do trabalho dos catadores é invisibilizada, e aquela que aparece acaba gerando compaixão, mas não nos mobiliza muito: o máximo que fazemos é sermos educados e solícitos ao entregar as latinhas nas mãos desses homens e mulheres.
Tudo isso para dizer o óbvio: um projeto sustentável que não leve em consideração o trabalho e as exigências por condições minimamente dignas dos catadores é falho em sua essência. Sustentabilidade que descarte pessoas, sobretudo as pobres e negras, é apenas outro nome para racismo ambiental.
Antes que nosso planeta esquente a ponto de tornar a vida humana insustentável, famílias de catadores podem morrer de fome. Uma contradição trágica que diz muito sobre nosso tempo, e que exige que as ações do Estado, mesmo quando bem-intencionadas, devam colocar os direitos dos trabalhadores em primeiro lugar na formulação de políticas públicas sobre reciclagem.
Pois é, todo Carnaval tem seu fim. E precisamos decidir para onde vai o lixo que produzimos nele e em todo o restante do ano.
A sorte é que caminhos já foram traçados. E um bom começo é enxergar, escutar e aprender com os trabalhadores quem vêm coletando nosso lixo há tanto tempo.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.