16/02/2025 - 6:49
Carlos Chagas Filho presidia a Pontifícia Academia das Ciências quando o Vaticano decidiu reabilitar a reputação do astrônomo punido por defender que a Terra girava em torno do Sol.Quando o cientista brasileiro Carlos Chagas Filho (1910-2000) foi convidado pelo então papa Paulo 6° (1897-1978) para presidir a Pontifícia Academia de Ciências, logo decidiu priorizar a resolução de uma dívida histórica da milenar Igreja Católica com a ciência: o chamado Processo Galileu.
Eram tempos de Inquisição quando o astrônomo Galileu Galilei (1564-1642) concluiu que a Terra não estava no centro do universo e girava em torno do Sol. Em 1615, a Igreja abriu um processo contra ele. Para escapar da fogueira, o cientista foi obrigado a se retratar e, mesmo assim, teve de passar o resto da vida em prisão domiciliar.
De tempos em tempos o assunto vinha à tona, em geral com pesadas críticas do mundo científico ao abuso do Vaticano contra um dos maiores gênios da história. Na opinião de Chagas Filho, era hora de passar a história a limpo.
Em sua autobiografia Um Aprendiz de Ciência, o brasileiro, assumidamente católico, lembra que o assunto era fonte de críticas “dos agnósticos à Igreja” e que não era justo que Galileu — ao contrário do físico Albert Einstein (1879-1955), que “nunca fora incomodado pela Igreja” — seguisse sofrendo “forte perseguição”.
Durante os 16 anos em que presidiu a academia, de 1972 a 1988, Chagas Filho liderou esses estudos que fundamentaram o perdão ao astrônomo. Em 1992, o papa João Paulo 2° (1920-2005) oficialmente reabilitou Galileu Galilei, reconhecendo o erro da Igreja ao condená-lo.
Pesquisadora na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e curadora de uma exposição realizada há 15 anos sobre Chagas Filho, a historiadora Ana Luce Girão Soares de Lima lembra que, “além de ter orientado a revisão do processo de Galileu, resultando na reabilitação do astrônomo”, o cientista brasileiro acumulou outros méritos no período em que presidiu a academia da Igreja Católica.
“[Ele trouxe] para a pauta os estudos sobre os efeitos dos conflitos nucleares para humanidade. Além disso, foi o responsável pela datação exata do Santo Sudário [relíquia que supostamente seria o manto que envolveu Jesus após a morte], concluindo que o tecido fora produzido no século 7°.”
Soares de Lima é coautora do livro Carlos Chagas Filho: Cientista Brasileiro, Profissão Esperança.
Um dos dois brasileiros que hoje integram a academia, o físico Vanderlei Bagnato, professor na Universidade de São Paulo (USP), ressalta que a passagem de Chagas Filho pela instituição, como “único brasileiro que foi presidente da academia” foi marcada pela preocupação “em fazer com que a ciência fosse um benefício a serviço do homem”.
“Há diversos comentários positivos de Chagas Filho [na instituição], bem como o reconhecimento pelo seu trabalho”, afirma.
Do CNPq à ONU
Fundada em 1603, a Pontifícia Academia de Ciências é a mais antiga instituição do tipo em todo o mundo. O próprio Galileu foi membro dela, que ainda no mesmo século 17 acabaria descontinuada. Em 1847, a academia retomou as atividades.
São 80 membros eleitos, de todas as partes do mundo — atualmente, quase metade deles já foi laureada com um prêmio Nobel. “Os integrantes não necessariamente precisam ser católicos. Eles podem ser ateus ou de outras religiões”, esclarece o vaticanista Filipe Domingues, professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, e diretor do Lay Centre, também em Roma. “A academia é um canal de diálogo da Igreja com o mundo.”
Bagnato acrescenta que a instituição “é um demonstrativo de que a Igreja quer estar junto com a ciências como instrumento de benefício para a sociedade e o mundo em geral”.
Mas a trajetória de Chagas Filho não se limita ao seu legado junto à alta cúpula do catolicismo. Médico, professor, diplomata, cientista e ensaísta, ele é considerado o fundador do Instituto de Biofísica da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), integrou a Academia Brasileira de Letras e a Academia Brasileira de Ciências, foi um dos mentores do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e participou de conferências da Unesco, a agência da Organização das Nações Unidas para a ciência, a educação e a cultura.
Para a historiadora Soares de Lima, foi pela importante atuação científica que Chagas Filho chegou “a vários postos em instituições governamentais” e acabou projetado “na hierarquia universitária”.
De família
A partir dos anos 1950, ele passou a ser uma importante voz na defesa do “uso pacífico e científico da energia nuclear e o combate aos testes feitos por grandes potências com a bomba atômica”, pontua ela. Chagas Filho integrou comitê da ONU sobre o tema e, em 1960, foi o secretário geral de conferência realizada pela entidade a respeito do assunto, em Genebra, na Suíça. “Nesse período, foi ainda nomeado embaixador do Brasil na Unesco”, acrescenta.
Ao longo da carreira, ele publicou cerca de 200 artigos científicos. Na avaliação de Soares de Lima, a trajetória de Chagas Filho contribuiu para “o desenvolvimento da profissionalização da ciência” no Brasil.
Sua ligação com o mundo científico vinha de berço. Seu pai, o médico sanitarista Carlos Chagas (1878-1934) foi quem descobriu a tripanossomíase americana, conhecida como doença de Chagas e, até hoje, é o único cientista do planeta a descrever completamente uma doença infecciosa: no caso, ele identificou o patógeno, o vetor, os hospedeiros, as manifestações clínicas e a epidemiologia da patologia em questão.
Chagas Filho morreu há 25 anos, em 16 de fevereiro de 2000. Ele tinha 89 anos e vivia no Rio de Janeiro.