24/08/2024 - 8:19
Atualmente em reforma, Museu de Arte Moderna sediará reunião de cúpula do G20 em novembro. Filho de alemão e brasileira, paisagista revolucionou ao usar vegetação nativa do Brasil.Quando descobriu que Roberto, um de seus quatro filhos, sofria de um problema de visão, Wilhelm não pensou duas vezes: procurou tratamento médico em seu país de origem. Wilhelm nasceu em Stuttgart, mas foi criado em Trier, cidade natal de outro Marx famoso, o filósofo Karl, primo de seu pai. A família Burle Marx, então, aproveitou a estadia de um ano e meio em Berlim, entre os anos de 1928 e 1929, para tomar “um banho de cultura” – segundo palavras do próprio Burle Marx em entrevista à paisagista Ana Rosa de Oliveira, em 1992.
Entre uma consulta e outra, Burle Marx, com 19 anos na época, ouviu música clássica, principalmente a de compositores alemães como Wagner, Strauss e Beethoven, e admirou as telas de grandes artistas, como Monet, Picasso e Van Gogh. Não foi, porém, em um teatro, museu ou galeria que ele teve a epifania que mudaria sua vida. Foi em uma visita ao Jardim Botânico em Dahlem, no sul da capital alemã.
“Ficou encantado ao se deparar com a beleza exuberante da flora brasileira”, destaca o curador Jens Hoffmann, coautor do livro Roberto Burle Marx: Brazilian Modernist (2022). “Revolucionou o paisagismo ao usar a vegetação nativa de seu país.”
Burle Marx criou mais de três mil jardins em cerca de 20 países. Um de seus favoritos era o Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro, cidade onde morou desde os quatro anos. A ideia de transformar uma montanha de entulho produzida pelo desmonte de três morros – Castelo, Santo Antônio e Querosene – na versão carioca do Central Park partiu da arquiteta Lota de Macedo Soares. Pelo projeto original, o aterro daria lugar a quatro pistas de alta velocidade. Foi Lota que, em 1960, convenceu o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, a ceder o espaço para a construção de um parque.
Para transformar seu sonho em realidade, ela convocou um time de notáveis como o arquiteto Affonso Eduardo Reidy, o botânico Luiz Emygdio de Mello Filho e a pedagoga Ethel Bauzer Medeiros, entre outros especialistas. Burle Marx ficou responsável pelo projeto paisagístico do local.
“Pela primeira vez, Burle Marx usou a quixabeira, típica da caatinga, em um de seus projetos”, relata o paisagista Robério Dias, autor do livro O Jardim do Menino: A Saga de Roberto Burle Marx (2011). “Além de descobrir o potencial paisagístico de incontáveis plantas, ele também salvou da extinção outras tantas espécies vegetais.”
Pintura ou paisagem?
Ao todo, o Parque do Flamengo tem uma área de 1,2 milhão de metros quadrados, que vai do Morro da Viúva, em Botafogo, ao Santos Dumont, no Centro. Dias conta que, para fugir da monotonia, Burle Marx procurou instalar, a cada 500 metros, um equipamento de lazer diferente. Entre outros, o parque dispõe de teatro de marionetes, coreto de música, campos de futebol, quadras poliesportivas e até uma pista de aeromodelismo. Não bastasse, ainda tem museus, como o da Carmen Miranda, que conta com 461 peças do figurino da cantora, e monumentos, como o de Estácio de Sá, de autoria do arquiteto Lúcio Costa, vizinho de Burle Marx no Leme.
Só de mudas, foram plantadas 17 mil, de 300 diferentes espécies, nativas e exóticas, como o ipê-amarelo, o abricó de macaco e a pata de elefante. Uma delas, porém, se destaca: a palmeira Talipot. Originária do Sri Lanka, ela floresce uma única vez e, em seguida, morre. O período de floração, no entanto, dura de um ano e meio a dois.
“O Parque do Flamengo é um oásis dentro do Rio de Janeiro”, compara Hoffmann. “Como se fosse um gênio da pintura, Burle Marx criou uma paisagem vibrante que mais parece uma obra de arte.”
O Museu Carmen Miranda, reaberto em 2023 depois de dez anos fechado, não é o único existente no Parque do Flamengo. O Museu de Arte Moderna é mais uma bem-sucedida parceria entre Reidy, responsável pelo projeto arquitetônico, e Burle Marx, autor do projeto paisagístico. Inaugurado em 1958, o MAM vai sediar, nos dias 18 e 19 de novembro, a cúpula do G20, que reúne os chefes de Estado e governo das maiores economias do planeta.
Por essa razão, tanto o museu quanto os jardins estão passando por obras de revitalização que incluem, entre outras melhorias, o restauro das calçadas, a instalação de câmeras, a expansão da ciclovia, a limpeza dos lagos e a poda das árvores. Reza a lenda que a primeira das 48 palmeiras imperiais que enfeitam o lugar foi plantada pelo então presidente da República Juscelino Kubitschek.
“Nos jardins do MAM, Burle Marx usou gramíneas de diferentes tonalidades para dar a sensação de ondas do mar”, explica a arquiteta Isabela Ono, diretora-executiva do Instituto Burle Marx e filha de Haruyoshi Ono, sócio do paisagista por mais de 30 anos. “Além de valorizar a beleza de parques e jardins, ele queria proporcionar relaxamento e bem-estar às pessoas.”
Mosaico a céu aberto
O Parque do Flamengo é apenas um dos incontáveis projetos que levam a assinatura de Burle Marx. No Rio de Janeiro, há outro tão importante quanto: o Calçadão de Copacabana, um dos cartões-postais mais famosos do Brasil e do mundo. São, na verdade, dois calçadões: o primeiro, próximo à faixa de areia, é inspirado na Praça do Rossio, em Lisboa, e o segundo, que compreende o canteiro central e o calçadão junto aos prédios da orla, fruto da imaginação do paisagista.
Se, em Lisboa, o traçado em pedras portuguesas simboliza o encontro das águas do Tejo com as do Atlântico; no Rio, o desenho ilustra as ondas do mar de Copacabana. Já o calçadão da Avenida Atlântica é, nas palavras de Ono, um grande painel artístico que, ao longo de quatro quilômetros de extensão, não se repete uma única vez. Foram usadas pedras portuguesas nas cores preto, branco e vermelho para representar as etnias que deram origem ao Brasil: negra, branca e indígena. “À época, Burle Marx tinha escritório no Leme. Numa semana, ele criava o projeto. Na outra, via sua obra ganhar vida no bairro ao lado, Copacabana”, relata a arquiteta.
Patrimônio mundial
Filho de um comerciante alemão e de uma musicista brasileira, Roberto Burle Marx nasceu em São Paulo, no dia 4 de agosto de 1909. Em 1949, comprou o Sítio Santo Antônio da Bica, em Barra de Guaratiba. O local, rebatizado de Sítio Roberto Burle Marx, tem um casarão de 500 metros quadrados e um terreno de 405 mil metros quadrados de Mata Atlântica, que abriga uma coleção de 3,5 mil espécies, de bromélias a palmeiras, e uma pequena capela do século 17.
O paisagista morou lá de 1973 a 1994, o ano de sua morte. “Um de seus hobbies era a pintura”, conta Ono. “Gostava de pintar quadros na varanda de casa. ”
Nos finais de semana, Burle Marx recebia convidados para almoços e jantares. Entre outros visitantes ilustres, Ono cita o poeta Vinicius de Moraes e o arquiteto Lúcio Costa. O sítio foi doado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1985 e reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como Patrimônio Mundial em 2021. Hoje, é aberto à visitação. No quarto usado por Burle Marx por quase 20 anos, há objetos pessoais como os óculos e os móveis originais.
Trinta anos depois de sua morte, o legado de Burle Marx continua vivo. “Detesto fórmulas. São como becos sem saída. Aceitar a fórmula é inviabilizar a capacidade de pensar”, afirmou o paisagista em entrevista disponível no portal Vitruvius. “Artista é aquele que consegue se expressar com inteligência”, define em outro trecho.
Este ano, Burle Marx virou tema de bloco de carnaval, com direito a boneco gigante de Olinda (PE). O nome do bloco é Pitangolangomangotango, em alusão a uma receita criada pelo próprio artista plástico à base de 1 quilo de pitanga madura, 2 colheres de sopa de açúcar e 750 ml de vinho tinto. Não por acaso, o bloco desfilou pelos jardins do MAM em pleno domingo de Carnaval.
“Certa vez, me perguntaram se eu era um cineasta marxista. Respondi que era um cineasta burle-marxista”, brinca o produtor João Vargas Penna, diretor da série documental de quatro episódios Expedições Burle Marx (2015) e do documentário Paisagem – Um Olhar sobre Roberto Burle Marx (2018). “Burle Marx deixou seguidores fiéis para cuidar de suas ideias e de sua obra. Eu sou um deles.”