Carlo Petrini, fundador do Slow Food, diz que o movimento tem se fortalecido e alcançado mudanças significativas pelo mote da alimentação boa, limpa e justa

“Os pequenos produtores devem ser protegidos. Assim se cuida do meio ambiente e da diversidade dos alimentos”, afirma com veemência Carlo Petrini, o jornalista italiano que criou o movimento Slow Food há 20 anos. Segundo ele, a rede Terra Madre – ligada ao movimento e composta por chefes de cozinha, acadêmicos e consumidores, além de agricultores – cresce em todo o mundo, contribuindo para inserir novos paradigmas na sociedade contemporânea. Entre eles, a valorização da produção local de alimentos e a consciência do papel ativo que o consumidor tem nesse processo. A busca de “utopias” como a agricultura local e o direito de toda a humanidade ao prazer também é central no movimento. PLANETA entrevistou esse entusiasta da ecogastronomia durante a segunda edição do Terra Madre Brasil, realizado em Brasília (DF) de 19 a 23 de março último, para reunir e fortalecer todos os atores da rede.

“O NOVO PARADIGMA IMPLICA O RETORNO À ECONOMIA LOCAL, À SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL,

À DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E À SOBERANIA ALIMENTAR”

Vivemos hoje, em todo o mundo globalizado, uma crise de valores e uma mudança de pressupostos básicos da civilização. Neste ano, grandes institutos de pesquisa americanos apontaram a crise do consumismo insustentável como problema número 1 do mundo. Como o sr. situa o movimento Slow Food nesse contexto?

É preciso compreender bem que tipo de crise é essa. Há dois tipos de crise: a dialética e a entrópica. A primeira carrega em si mesma os pressupostos e condições para solucionar a crise. Já a entrópica é muito mais grave, porque implica a perda do bom-senso. Estou convencido de que vivemos essa segunda. O termo crise deriva do grego e significa passagem. Sairemos dela, mas depende de para onde vamos, se para melhor ou pior. Esta não é como a crise financeira global de 1929. Ao mesmo tempo, existe agora uma crise financeira, ambiental e energética. Para solucioná-la teremos de assumir novas perspectivas. Teremos de abraçar grandes ideias e não ter medo da utopia. As manifestações que vimos no Terra Madre Brasil podem parecer secundárias, já que não contam com a força das multinacionais ou do grande sistema econômico. Mas a defesa que ali se fez do slow food, da agricultura familiar, biológica, de um estilo de vida mais simples, natural e saudável, é a mesma que se faz no mundo todo. O novo paradigma implica o retorno à economia local, aos pés no chão, à sustentabilidade ambiental, à democracia participativa e à soberania alimentar.

 

O que significa soberania alimentar?

Cada comunidade tem o direito de escolher o que cultivar e comer, e tais escolhas estão diretamente ligadas a seu sistema ambiental, sua história e sua identidade. Isso significa o ressurgimento de uma agricultura e de uma gastronomia locais, que recusam a agricultura e a gastronomia impostas. Basta do colonialismo gastronômico! Outra ideia-força: superar o conceito de consumidor e reforçar o de coprodutor. Comer é um ato agrícola. Se como um produto dos produtores do slow food, ajudo essa agricultura. Se como os produtos massivos da indústria, ajudo as multinacionais. Meu papel como consumidor não é passivo. Muita gente diz que nosso movimento é uma utopia. Mas acredito que quem planta utopia colhe realidade.

O que pode ser feito para conscientizar as pessoas de seu papel como coprodutoras?

O mais importante é a comunicação e a educação. A segunda coisa é conferir mais dignidade à gastronomia, mas não necessariamente a da panela. Em todo o mundo, em qualquer hora do dia ou da noite, a televisão mostra alguém com uma panela. E em todos os jornais há fotos de receitas apresentadas como se fossem cadáveres. Claro, isso também é gastronomia, mas apenas uma pequena parte dela. A gastronomia é uma ciência multidisciplinar complexa. Ela implica a receita, a cozinha, o prazer, a agricultura, o meio ambiente, a saúde, a história, a antropologia, a economia, a política. Quando nascemos, não vemos e não ouvimos; a primeira coisa que buscamos é o peito da mãe. A mãe que dá o leite faz um ato de amor; em troca, o filho que suga de seu seio lhe dá prazer. Começa aqui o mistério da vida e a nobreza da gastronomia.

Como fazer isso na prática?

É preciso, através da educação e da informação, estabelecer uma relação direta com os produtores, fortalecer chefes de cozinha que valorizam os produtos dos agricultores do slow food e as hortas escolares. Neste ano, o Slow Food abriu mais de mil hortas escolares no mundo. Uma delas na própria Casa Branca! A primeira-dama norte-americana, Michelle Obama, criou uma horta na residência presidencial, atendendo a uma solicitação de Alice Waters, vicepresidente do movimento Slow Food. Atos exemplares desse tipo são muito importantes, pois as crianças hoje estão literalmente emparedadas. Na Europa, uma criança permanece em média três horas diante da televisão diariamente, sendo bombardeada pela publicidade. Destituídas de critério seletivo, as crianças não têm capacidade de decodificar as mensagens e, assim sendo, as absorvem por inteiro. Por isso, é preciso colocá-las o mais possível em contato com a terra, para que compreendam como se semeia, como se cuida da planta, que fruto ela dá… Para que conheçam as leis e os processos da vida que determinam suas próprias existências. Fazer com que uma criança viva e conheça a terra é a maior educação que lhe pode ser proporcionada.

 

Isso não é fácil na vida moderna, sobretudo a dos grandes centros urbanos, tão distantes da natureza.

Há, no entanto, muitos atos simples que podem ser vividos no dia a dia. Não digo que seja fácil, mas estou muito confiante. Todo mundo, afinal, sabe o que são as coisas boas. É importante dizer que as coisas boas são direito de todos, e o Slow Food não é elitista. Para começar, devemos lutar contra o desperdício. Se o reduzirmos, poderemos pagar melhor o produtor e exigir melhor qualidade dos produtos. No mundo atual produzse alimento suficiente para 12 bilhões de pessoas. Somos, no entanto, apenas 7 bilhões de pessoas sobre a face da Terra, e 1 bilhão delas simplesmente não come. Isso significa que metade da produção é jogada no lixo ou usada para alimentar animais como porcos, vacas, galinhas, etc. É vergonhoso e imoral. Faz parte do novo paradigma proposto pelo Slow Food acabar com o desperdício e ter prazer em comer, mas sem exagero, com moderação.

“MICHELLE OBAMA CRIOU UMA HORTA NA CASA BRANCA, ATENDENDO A UMA SOLICITAÇÃO DE ALICE WATERS, VICE-PRESIDENTE DO MOVIMENTO SLOW FOOD”

Em que pé estão os mercados em que o produtor vende diretamente para o consumidor?

É preciso fortalecer os mercados de produtores com venda direta, sem intermediação. Para que isso aconteça, é muito importante o apoio da comunidade. Isso está funcionando muito bem, são ideias aplicadas de maneiras diversas de um país para outro. Por exemplo, nos Estados Unidos (onde nasceu o supermercado), em 1995, foi aberto o primeiro farmer market de pequenos agricultores. Em 2000, os mercados de produtores eram 300 ou 400. Em 2005, chegaram a 3 mil. Hoje são 12 mil, inclusive em bairros pobres. Na Itália, tínhamos os mercados de agricultores na Idade Média. Com o passar do tempo, eles foram monopolizados pelos comerciantes. E agora temos que reconstruí-los. Mas o direito do produtor de vender diretamente é uma batalha que deve ser feita em todos os cantos do planeta.

No Brasil, fala-se muito do Slow Food, mas sem mostrar o rosto do produtor. Como fazer para que ele participe mais?

Muitos convívios no Brasil nasceram de produtores; outros, de cidadãos urbanos. O espírito do nosso movimento é o de unificação. Não somos um partido ou um sindicato, e sim uma associação livre de pessoas, dentro da qual os produtores e coprodutores devem aprender a dialogar, a viver e a crescer. É preciso fazer como na agricultura, cada coisa a seu tempo. Será grande o Slow Food no Brasil, porque é grande o Terra Madre e porque este país tem uma potencialidade enorme e uma riqueza grandíssima. Tudo que aconteceu nos últimos dez anos é incrível. Alguma coisa mudou.

 

Qual é a importância do seu Bené e da farinha d’água que ele produz no Pará, para a cultura brasileira?

Em 2007, no Rio de Janeiro, vi o filme do seu Bené [pequeno produtor ligado ao Slow Food] e me emocionei. Ele descreve bem o sentimento da viagem [para o encontro da rede em Turim, em 2006]. Ver esse produtor que parte de Bragança (PA), pega um avião, e depois diz para sua mulher que o avião é como o ônibus… e também ver sua dignidade em um mundo incrível para ele. Para mim é um grande filme e também explica o sentido do Terra Madre. Como o seu Bené, havia pelo menos outras 5 mil pessoas. E o maior valor dessa experiência é a autoestima. Quando as pessoas vêm a Turim, conhecem gente do mundo todo e perguntam: “Mas por que estou aqui? Por que eu?!” A questão é importante, pois ele protegeu uma semente, uma raça animal, a dignidade do mundo rural, sua história. E agora, quando ele volta para sua comunidade, tem o patrimônio mais importante de todos, que é a autoestima.

“A COZINHA É UMA LINGUAGEM, UMA FORMA DE EXPRESSÃO. E, COMO TODAS AS LINGUAGENS, ESTÁ EM CONSTANTE TRANSFORMAÇÃO”

De que forma podemos proteger a cozinha tradicional?

A cozinha é uma linguagem e, como todas as linguagens, está em constante transformação. O italiano que falo não é o que se falava há 100 anos. Assim, também a cozinha, que é uma forma de expressão, está em constante mutação. No entanto, para mudar, é importante ter memória. Se precisa chegar a um lugar, você deve saber de onde vem. Durante o último Terra Madre, em Brasília, tive o prazer de experimentar uma culinária feita com produtos brasileiros que 10 ou 20 anos atrás certamente não era preparada da mesma maneira. Qualquer pessoa que colocar a cozinha como um ringue de combate entre chefs tradicionais e chefs inovadores está errando. Não existem chefs completamente tradicionais nem chefs totalmente criativos. Na criatividade de cada um está o bom e o menos bom. Eu acredito que a riqueza desse patrimônio – de produtos – aqui no Brasil oferecerá muitas oportunidades que ainda não foram exploradas. A diversidade é a força criativa. Na Europa não existe mais tanta diversidade, sempre se fala nas mesmas coisas. Então, os chefs fazem essa batalha “criativos contra tradicionalistas”, e não entendem que a grande batalha é a defesa da diversidade, e esta, por sua vez, é defendida pelos pequenos agricultores.

 

A chef Adriana Lucena é uma das líderes do Slow Food no Brasil. Ela administrou a cozinha durante o último Terra Madre, em Brasília.

No 2° Terra Madre Brasil, falou-se muito da compostagem dos resíduosorgânicos. O Slow Food poderia incorporar essa prática?

O maior responsável pela destruição ambiental é este sistema alimentar. Muitos pensam que é a indústria, a poluição dos carros… não! Vivemos um paradoxo: não somos nós que comemos o alimento, é ele que nos come. Pedimos à terra que produza mais e continuamos a enchê-la de químicos, e assim destruímos a fertilidade do solo. Se você tiver chance de perguntar a um velho camponês, como era a terra antigamente, se era mais ou menos fértil do que hoje, ele certamente dirá que era mais fértil. Nos últimos 20 anos foram jogados no solo mais produtos químicos do que nos 120 anos precedentes. É um crescimento exponencial. Desde 1900, perdeu-se mais da metade da biodiversidade do planeta. É um paradoxo, pois na tevê nunca se falou tanto de comida. E tudo está morrendo. Mas também há uma questão social, dos agricultores. Seu trabalho não é reconhecido, eles não têm dignidade econômica. Na Itália, meu país, a situação é crítica. Nos anos 1950, 50% dos italianos eram camponeses. Hoje, são apenas 3%. Desses, 60% têm mais de 60 anos. Não comeremos computadores! E não devemos pensar que o alimento deve chegar do Brasil para nós, italianos. Cada país deve ter sua agricultura local. Acredito que o que está acontecendo no Brasil, nos últimos anos, é extraordinário. Um grande processo de conscientização. Olhem em volta, vejam a idade média [do público do Terra Madre Brasil], todos jovens. Fantástico, é muito importante a esperança dos jovens. E gostaria de dizer o seguinte: esta é uma revolução doce, tranquila, mas é uma revolução. Devemos lutar por ela em todo o planeta, pois não é possível combater o poder excessivo das multinacionais trancados em nossos apartamentos. É a rede Terra Madre que dá força ao movimento internacional para reagir à Monsanto, à Cargill, à Novartis… esses criminosos! Têm 80% da propriedade das sementes. Se não formos uma rede planetária, não conseguiremos reagir. Mas deve ser uma rede baseada em dois elementos, que são distintivos do Terra Madre. Primeiro, a inteligência afetiva, do coração. Segundo, a anarquia austera. Cada um faz em sua casa aquilo que deseja, este é o princípio da soberania alimentar. É a diversidade que muda o mundo.

Como ser slow numa época em que tudo conspira para sermos mais rápidos?

A lentidão não é um valor absoluto, é uma medicina homeopática. Uma pessoa muito lenta é um pouco estúpida. Mas um pouco de lentidão todo dia é fantástico, especialmente quando se está angustiado. Nós é que devemos governar o ritmo da vida. É muito importante não confundir eficiência com velocidade. Os velozes são os que mais erram, inclusive nas relações humanas.

Dentro da máxima do alimento que se come de modo justo e correto, como se incorpora a dimensão do prazer?

Quando o Slow Food nasceu, estava escrito: “movimento internacional pela proteção e o direito ao prazer”. Acredito que, neste momento histórico, este seja um direito fundamental da humanidade. Traduzindo em outros termos: o prazer em direção ao belo e ao bom – na língua hebraica, o “belo” e o “bom” são uma só palavra. Se nossos avós batalharam pelo voto universal ou pelo direito às oito horas de trabalho, nossa batalha social e política mais importante é o direito ao belo e ao bom para todos.

SERVIÇO Info – www.slowfoodbrasil.com