11/12/2022 - 7:40
Imagine uma partida da Copa do Mundo de futebol transmitida pela TV como nos velhos tempos, com uma ou duas câmeras no meio de campo. Chatice total, pensaria o espectador de hoje, habituado a assistir aos lances por vários ângulos, com super slow motion, linha de impedimento traçada por computador e outros recursos. Estamos mais exigentes, queremos ver as jogadas de diversas perspectivas, e a moderna tecnologia nos dá condições para isso.
A cobrança por uma visão mais abrangente nas transmissões esportivas está em sintonia com um movimento que avança de forma lenta, mas irreversível, em relação ao conhecimento humano. Antes, o ideal era estudar as partes em detalhes e dali deduzir o todo. Agora, queremos apreender tudo sobre essas partes e as relações existentes entre elas. É uma mudança de paradigma, de padrão pelo qual encaramos a realidade.
O paradigma newtoniano-cartesiano, que via o universo como uma máquina e o fatiava para analisá-lo, vai dando lugar ao holístico (do grego “holos”, ou “totalidade”), que o vê como um todo em constante interação. Isso resulta numa perspectiva mais rica e adequada ao que acontece, pois, como dizia o estadista sul-africano Jan Smuts (que lançou o termo holismo em seu livro “Holismo e Evolução”, de 1926), o todo é maior que a soma das suas partes.
O novo paradigma traz transformações substanciais em pensamentos, percepções e valores, mas não rompe com o anterior. Este, afinal, nos levou longe: conhecemos as partículas que constituem a matéria e lançamos sondas aos confins do Sistema Solar, por exemplo. O pensar holístico, assim como os que o antecederam, usa o conhecimento prévio para fazer mapas da realidade mais precisos, num constante processo de resposta a novos desafios.
A visão holística já era perceptível quase 500 anos antes de Cristo, quando o filósofo pré-socrático Heráclito falava em “as partes no todo, o todo nas partes”. O escritor e cientista alemão Goethe propôs algo nesse sentido no ensaio “A experiência como mediadora entre o sujeito e o objeto”, de 1772. Mas o holismo começou a emergir de fato neste hemisfério no século 20, em reação a lacunas que o paradigma newtoniano-cartesiano vinha acumulando.
Brechas a descoberto
Essas lacunas incluíam, por exemplo, as discrepâncias entre a teoria da relatividade de Albert Einstein, baseada na ciência “tradicional”, e o comportamento aparentemente aleatório das partículas subatômicas estudadas pela física quântica. A medicina alopática, por seu lado, ainda não explica por que terapias como a acupuntura curam. Outro flanco de avanço foi a emergência da ecologia, o estudo da interação entre os organismos e o ambiente.
Ao mesmo tempo que esse “incômodo” científico se avolumava, movimentos culturais abriam espaço para formas mais contestadoras e abrangentes de pensar e viver. Nos anos 1950, por exemplo, surgiu a beat generation, grupo formado sobretudo por artistas e escritores americanos que reagia ao triunfalismo, ao consumismo e ao pensamento acrítico dominantes no país após a Segunda Guerra Mundial. Dela derivou o movimento hippie na década seguinte – a mesma que viu, em 1968, os protestos civis de maio na França e a Primavera de Praga, contra o domínio comunista na Tchecoslováquia. Ainda nos anos 1960, os franceses Louis Pauwels e Jacques Bergier (criadores de PLANETA) lançaram um best-seller internacional, “O Despertar dos Mágicos”, em que propunham um novo olhar sobre áreas pouco exploradas, como as tradições antigas e a parapsicologia.
Muitos acadêmicos ainda não aceitam o paradigma holístico. Parte deles vive a típica inércia humana em relação ao novo: é mais fácil e menos trabalhoso pensar como de hábito e deixar mudanças para amanhã. Outra parte prefere o status quo de olho em vantagens pessoais. É o caso de cientistas que, apesar das evidências de que a Terra vive uma fase de aquecimento na qual o ser humano tem culpa, lançam estudos bancados por instituições ligadas aos combustíveis fósseis nos quais dizem que o planeta está normalíssimo, ou até esfriando (um rigoroso inverno no hemisfério norte “comprovaria” isso).
Desconsiderar a visão holística, porém, é cada vez mais complicado. As celebridades associadas ao novo paradigma incluem o americano Murray Gell-Mann, prêmio Nobel de Física em 1969; os físicos David Bohm (britânico), Fritjof Capra (austríaco) e Amit Goswami (indiano); o belga Ilya Prigogine, prêmio Nobel de Química em 1977; os filósofos Teilhard de Chardin (francês) e Ervin László (húngaro); o matemático e filósofo inglês Alfred North Whitehead; o filósofo e pedagogo americano John Dewey; os biólogos Gregory Bateson (britânico), Francisco Varela e Humberto Maturana (chilenos); o psicólogo Karl Pribram (austríaco); o economista Jeremy Rifkin (americano); o pensador Ken Wilber (americano). Isso sem falar do químico inglês James Lovelock, criador da Hipótese Gaia, segundo a qual a Terra se comporta como um organismo vivo.
Áreas em destaque
A lista não para de crescer. Em certas áreas, o pensamento holístico avança a passos largos; em outras, a resistência sofrida retarda o processo. Conheça algumas delas a seguir. Ecologia – Transdisciplinar por excelência, a ecologia penetra no cotidiano ao expor, por exemplo, que o fabuloso crescimento econômico recente obtido pela China foi conquistado à custa de um prejuízo ambiental difícil de sanar, o qual repercute na saúde da população, na economia e no turismo. Ou que o acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera provocado pela atividade humana está desarranjando o clima, multiplicando e/ou intensificando eventos extremos com dramáticas consequências.
O relatório “Nosso Futuro Comum”, divulgado em 1987 pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, lançou uma expressão que marca nosso tempo: o desenvolvimento sustentável, ou sustentabilidade. Em sua origem, o termo significa a forma como os sistemas biológicos perduram e permanecem diversificados e produtivos. A ecologia nos faz perceber que exploramos nosso planeta de forma insustentável. Fica cada vez mais nítido que a Terra não tem condições de suprir seus cerca de 7,6 bilhões de seres humanos nos padrões dos países desenvolvidos.
Cálculos da organização não governamental Global Footprint Network (baseados em informações da ONU, da Agência Internacional de Energia, da Organização Mundial do Comércio e dos governos nacionais) indicam que, em 2017, a humanidade esgotou em 2 de agosto todos os recursos que o planeta podia produzir naquele ano. Se a Terra fosse uma empresa, teria de fechar as portas naquele dia por falta de matéria-prima. A cada ano essa data-limite recua – em 2016, ela ocorreu em 8 de agosto. Como a conta não fecha, o apego ao consumo de bens materiais precisa ser revisto o quanto antes.
Deus joga dados?
Física – A física newtoniana e a quântica ainda não resolveram suas pendências. Albert Einstein, cuja teoria da relatividade foi comprovada em 1919, sentia-se incomodado com a falta de determinismo proposta pela mecânica quântica, que afirma ser impossível dizer onde uma partícula vai estar e calcula as probabilidades relacionadas a esse fenômeno. Em 1926, Einstein escreveu ao colega Max Born uma carta a esse respeito na qual dizia que “Deus não jogava dados”. Mas os incontáveis experimentos da física quântica têm mostrado sua validade.
Os físicos vivem, portanto, num arranjo provisório: usam a mecânica quântica para tratar do reino do infinitamente pequeno e a física newtoniana quando se fala de estrelas, galáxias, buracos negros e outros corpos cósmicos. Mas sabem que há uma teoria capaz de reunir isso harmonicamente num só conjunto de ideias – a chamada “teoria de tudo”. Cada nova descoberta, do bóson de Higgs à expansão ultrarrápida no início do universo, nos coloca mais perto dessa teoria unificadora.
Economia – Como reflete de perto o status quo, a economia tende a fazer abordagens fragmentárias. Mas já desponta uma nova visão dessa ciência, associada às formas como empresas e governos podem garantir seu crescimento e prosperidade respeitando três aspectos fundamentais: demandas econômicas, resiliência ambiental e cuidado com todos os segmentos da sociedade afetados por suas atividades.
Muitas empresas já procuram atuar segundo princípios sustentáveis e há índices em bolsas de valores dedicados a elas – os quais, em geral, mostram resultados melhores do que os das companhias que fazem o tradicional “business as usual”. A economia circular, que encaminha desperdícios de uma cadeia produtiva a outra, para servir como insumos de qualidade, e estende ao máximo a vida útil dos recursos naturais ao recuperar, reutilizar e reciclar materiais, é uma nova tendência nesse sentido que vem conquistando adeptos como a rede de moda C&A.
Cura misteriosa
Saúde – A medicina ocidental concentrou-se em estudar o homem como máquina e fez do médico o mecânico que repara as peças defeituosas. A especialização chegou a tal ponto que praticamente fez desaparecer o clínico geral. Enquanto isso, remédios e procedimentos onerosos tornaram o setor uma indústria bem rentável. Outros sistemas de cura, porém, mostram que é possível restabelecer a saúde a partir de meios diferentes, mais baratos e com menor chance de causar efeitos colaterais.
A reabertura do contato entre a China e os EUA, em 1972, ajudou a divulgar práticas milenares como a acupuntura, e o desafio de explicar como ela funciona está expandindo o conhecimento científico a seu respeito. A influência da mente do paciente no processo de doença e de cura também virou objeto de estudo, assim como os estados mentais positivos, que trazem resiliência e reduzem o risco de desequilíbrios orgânicos. Pesquisas sobre a influência da prece e da meditação na saúde também estão disseminadas nos dias atuais.
Educação – O sistema educacional tradicional divide a realidade em vários pedaços para estudá-los, a tal ponto que, nas universidades, o psicólogo francês Pierre Weil dizia que se estabelecem “verdadeiras torres de Babel”. Princípios de uma educação holística já existem pelo menos desde os anos 1970, quando um congresso sobre o tema foi realizado na Universidade da Califórnia em San Diego. As escolas que os praticam aliam ao saber convencional o desenvolvimento do aluno em áreas como espiritualidade, autoaprimoramento psicológico e emocional, responsabilidade e lapidação do caráter. Entre as experiências nessa área estão escolas baseadas nos trabalhos do filósofo indiano Jiddu Krishnamurti, como a Brockwood Park School (na Grã-Bretanha), e do filósofo austríaco Rudolf Steiner, conhecidas como Waldorf.
Religiosidade – A insatisfação com as correntes doutrinárias predominantes no Ocidente tem levado a buscas espirituais pessoais e abriu espaço para o avanço de religiões orientais, sobretudo o budismo. Também surgiu um novo olhar sobre conceitos de doutrinas esquecidas, como o xamanismo, a importância do princípio feminino e o panteísmo (a crença de que Deus está em tudo e tudo está em Deus). Em vários outros terrenos o pensamento holístico avança. Ele vem em sintonia com o maior dos desafios que a humanidade enfrenta: como garantir a continuidade da raça num planeta em transformação, cujas mudanças colocam em risco nossa sobrevivência. Para chegar lá, certamente aprenderemos muito com o holismo.
Mudança de paradigma
O conceito de mudança de paradigma foi popularizado em 1962, com o livro A Estrutura das Revoluções Científicas, do filósofo e físico americano Thomas Kuhn. Na obra, o autor afirma que o avanço científico não é evolucionário, mas sim “uma série de interlúdios pacíficos pontuados por revoluções intelectualmente violentas”, nas quais “uma visão de mundo conceitual é substituída por outra”.