O conteúdo da última refeição consumida pelos primeiros animais conhecidos que habitaram a Terra há mais de 550 milhões de anos revelou novas pistas sobre a fisiologia de nossos primeiros ancestrais animais, de acordo com cientistas da Universidade Nacional Australiana (ANU). As descobertas foram publicadas na revista Current Biology.

A biota ediacarana são os organismos grandes mais antigos do mundo e datam de 575 milhões de anos. Os pesquisadores da ANU descobriram que esses animais comiam bactérias e algas provenientes do fundo do oceano. Os achados revelam mais sobre essas estranhas criaturas, incluindo como elas eram capazes de consumir e digerir alimentos.

Os cientistas analisaram fósseis antigos contendo moléculas preservadas de fitoesteróis – produtos químicos naturais encontrados nas plantas – que sobraram da última refeição dos animais. Ao examinarem os restos moleculares do que os animais comeram, os pesquisadores conseguiram confirmar que um organismo semelhante a uma lesma, conhecido como Kimberella, tinha boca e intestino e digeria alimentos da mesma forma que os animais modernos. Os pesquisadores dizem que esse organismo provavelmente era uma das criaturas mais avançadas dos ediacaranos.

Dickinsonia: sem olhos, boca ou intestino e comprimento de até 1,4 metro. Crédito: Stanton F. Fink/Wikimedia Commons

Sem boca nem intestino

A equipe da ANU descobriu que outro animal, que cresceu até 1,4 metro de comprimento e tinha um desenho semelhante a uma costela impresso em seu corpo, era menos complexo e não tinha olhos, boca ou intestino. Em vez disso, a estranha criatura, chamada Dickinsonia, absorvia comida através de seu corpo enquanto atravessava o fundo do oceano.

“Nossas descobertas sugerem que os animais da biota ediacarana, que viveram na Terra antes da ‘explosão cambriana’ da vida animal moderna, eram uma mistura de completas esquisitices, como Dickinsonia, e animais mais avançados, como Kimberella, que já tinham alguns propriedades fisiológicas semelhantes aos humanos e outros animais atuais”, disse o principal autor do estudo, dr. Ilya Bobrovskiy, do Centro Alemão de Pesquisas em Geociências (GFZ-Potsdam).

Tanto Kimberella quanto Dickinsonia, que possuem estrutura e simetria diferentes de tudo que existe hoje, fazem parte da família da biota ediacarana que viveu na Terra cerca de 20 milhões de anos antes da explosão cambriana – um grande evento que mudou para sempre o curso da evolução de toda a vida na Terra.

“A biota ediacarana realmente são os fósseis mais antigos grandes o suficiente para serem visíveis a olho nu, e eles são a nossa origem e todos os animais que existem hoje. Essas criaturas são nossas raízes visíveis mais profundas”, disse Bobrovskiy, que concluiu o trabalho como parte de seu doutorado na ANU.

Marca registrada

O coautor do estudo Jochen Brocks, professor da Escola de Pesquisa de Ciências da Terra da ANU, disse que as algas são ricas em energia e nutrientes e podem ter sido fundamentais para o crescimento de Kimberella.  “A alimentação rica em energia pode explicar por que os organismos da biota ediacarana eram tão grandes. Quase todos os fósseis que vieram antes da biota ediacarana eram unicelulares e de tamanho microscópico”, disse o professor Brocks.

Usando técnicas avançadas de análise química, os cientistas da ANU conseguiram extrair e analisar as moléculas de esteróis contidas no tecido fóssil. O colesterol é a marca registrada dos animais e foi assim que, em 2018, a equipe da ANU conseguiu confirmar que a biota ediacarana está entre nossos primeiros ancestrais conhecidos.

As moléculas continham assinaturas reveladoras que ajudaram os pesquisadores a decifrar o que os animais comeram antes da sua morte. O professor Brocks disse que a parte difícil era diferenciar entre as assinaturas das moléculas de gordura das próprias criaturas, os restos de algas e bactérias em suas entranhas e as moléculas de algas em decomposição do fundo do oceano que estavam todas enterradas nos fósseis.

Intestino avançado

“Os cientistas já sabiam que Kimberella deixava marcas de alimentação raspando as algas que cobriam o fundo do mar, o que sugeria que o animal tinha um intestino. Mas foi somente depois de analisar as moléculas do intestino de Kimberella que conseguimos determinar exatamente o que ela comia e como digeria os alimentos”, disse o professor Brocks. “Kimberella sabia exatamente quais esteróis eram bons para isso e tinha um intestino avançado e afinado para filtrar todo o resto.

Brocks prosseguiu: “Esse foi um momento eureca para nós; usando produtos químicos preservados nos fósseis, podemos agora tornar visíveis os conteúdos intestinais de animais, mesmo que o intestino tenha se deteriorado há muito tempo. Em seguida, usamos essa mesma técnica em fósseis mais estranhos, como Dickinsonia, para descobrir como ele estava se alimentando e descobrimos que Dickinsonia não tinha intestino”.

Bobrovskiy coletou os fósseis de Kimberella e Dickinsonia em penhascos íngremes perto do Mar Branco, na Rússia – uma parte remota do mundo que abriga ursos e mosquitos – em 2018.